Apologia e crítica contemporâneas da expansão
«(…) É claro que as frequentes sortidas para razia das aldeias,
aprisionamento de camponeses e de gado que Zurara monotonamente descreve nas
crónicas dos dois Meneses, pai e filho, condes de Viana, e os assaltos na costa
ocidental africana para escravização e/ou resgate de azenegues e outros
gentios, ou mouros, pouco se parecem com as andanças de cavalaria dos Amadises,
mais tarde dos Palmeirins: a doutrina então vigente justificava-os pela oportunidade
de conversão das almas e pela necessidade de meios materiais para aumento
militar da cristandade. Vamos encontrar mais tarde condenações da escravatura em
Fernão Oliveira e em Sá de Miranda, mas situadas num plano de utopia,
inspirada, no poeta, pelo mito da Idade de Ouro. Mais impressionante é o facto
de, fora das condições de luta ou de rapina ferozmente interessada, os infiéis
e os gentios poderem ser encarados como seres humanos sensíveis, embora ainda
não como partícipes de colaboração estável ou como objecto-sujeito de pura
curiosidade recíproca. Num breve parágrafo da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses em que se refere às aldeias
de rurais magrebinos para, segundo a norma retórica de Tito Lívio, associar a
sua audácia e tino militar com a sua fides punica (traduzida em termos de
deslealdade islâmica), Zurara dá conta da pobreza e seminudez desses
camponeses, comparando os seus casebres, onde dormem junto ao gado, com as casas
rurais, de Entre o Douro e Minho. Em vários episódios de assalto de cristãos a alarves,
azenegues ou gentios da encosta ocidental africana, é bem sensível, mesmo
quando recalcada, a simpatia e até a admiração do narrador pelos assaltados,
geralmente mal armados. E acontece que já antes, no saque subsequente à tomada
de Ceuta, nós vemos alguns desses campónios portugueses, acostumados à miséria
das suas choças, a desbaratar as despensas fartas e a refocilar nas camas brandas e moles, dos mouros
desapossados, cujas vozes ouvimos, pouco depois, a lamentar-se, nos arrabaldes,
não apenas dos bens perdidos, mas também do futuro corte de comunicação com
filhos e outros parentes próximos em Gibraltar ou em Granada.
Quanto aos gentios, frequentemente qualificados de bestiais, segundo critérios que têm que ver com a antropofagia, a
nudez, a alimentação não cozinhada (ou tida como imunda pelos padrões europeus), a falta de limpeza, o comunitarismo
social, a sua inacessibilidade ao trato, e a religião não-monoteísta,
rapidamente foi reconhecida a sua condição humana e apreciada a sua convertibilidade
ao cristianismo, bastante mais fácil que a dos islamitas. Isso não os livrou da
escravização pelas armas, ou da sua compra quando já escravizados nas lutas
intertribais que o próprio trato negreiro estimulou. Na conhecida cena de Zurara
relativa à partilha, em Lagos, do primeiro grupo numeroso de escravos gentios,
apresentados por Lançarote, há dois traços característicos que o
cronista sublinha como inerentes à exemplaridade do retrato do infante Henrique.
Por um lado, nesse acto inaugural e portanto inédito de uma nova fase moderna
da escravatura, o narrador entende dar vivacidade a uma reacção emotiva
pessoalmente sua, pedindo a Deus que perdoe as suas lágrimas provocadas por
simples simpatia humana, perante a violência de um repartir de reses humanas
que nem sequer respeitava os laços de mãe e filho, enquanto o infante, a
cavalo, e encarando as coisas de um modo tido como mais consequentemente
religioso, considera com grande prazer na
salvaçom daquelas almas que ante eram perdidas. Por outro lado, Henrique redistribui imediatamente o
quinto dos cativos que lhe cabe em quinhão, comprovando, mais uma vez, aquela
sua ética de mero serviço proselítico de Deus e de uma honra desinteressada
que-encaminha todos os ganhos para galardão dos executantes directos, ou para prossecução
do serviço à causa». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões
de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Conferência
proferida no Congresso Le Caravelle Portughesi sulle vie delle Indie, Milão,
1992.
Cortesia de Caminho/JDACT