A Cidade Manuelina e Filipina
«(…) De resto, outros
conventos e igrejas se ergueram no século XVI, poucos já dentro da cidade (a
Graça reconstruída, como o Espírito Santo), vários não longe dela, pelo
exterior (Anunciada, S. Roque, Sant’Antão, Esperança, igrejas do Loreto, de Sta.
Catarina do Monte Sinai), outros mais distantes (Santos-o-Novo, já desde fins do século
XV, Madre de Deus, Chelas, Odivelas, S. Domingos de Benfica, S. Francisco de
Xabregas, Capuchos, os Jerónimos). Em meados do século, Lisboa, grande metrópole à escala europeia»
(Oliveira Marques), contaria cerca de 80 mil habitantes, com 432 ruas e
travessas, 89 becos, e 62 postos
que viriam a evoluir do seu estatuto de meio rural para sítios e depois
bairros, conforme um Sumário (das) Coisas (…) de Lisboa, de Cristóvão
Rodrigues Oliveira publicado em 1554
ou 55, e que é uma das primeiras
descrições estatísticas da cidade que se conhecem. De meados para fins de
Quinhentos, por desdobramento (quer dizer por aumento de população fixada),
definiram-se doze freguesias além das
vinte e três existentes já no século XIII.
Mas outra descrição da
cidade foi publicada em 1554: Urbis Olisiponis Descriptio, de Damião
de Góis, em 1554. Este humanista
distinguia então em Lisboa sete monumentos principais: a
Misericórdia, o Hospital do Rossio e os Estaos, os
armazéns do trigo, os das Casas da Mina e da
Índia, a Alfândega e o Arsenal, a que atribuía magnificência e sumptuosidade Inacreditáveis,
adjectivos que, aliás, empregava também, juntamente com elegante, sobre muitas das construções,
quer de pessoas principais e nobres, quer de particulares», e alguns
conventos. Contrariamente, dois embaixadores de Veneza, em 1580, achavam que todas as
casas dos Senhores, mesmo as maiores, eram construídas com pouca regularidade
e sem carácter arquitectónico e não mereciam consideração quanto à matéria.
Já em 1571, aliás, Francisco de
Holanda lamentava que a Lisboa falecessem
monumentos condignos. Uma excepção, porém: a casa ribeirinha dos Bicos, do herdeiro de Afonso de Albuquerque,
de gosto italianisante, já no primeiro quartel do século.
Outra documentação, de
carácter gráfico, foi abundantemente devida a autores estrangeiros, S. Munster
(Basileia, 1541) e G.
Braunio (Colonia, 1572 e 93),
que, sobretudo o último, puseram nas vistas panorâmicas que editaram cuidados
de informação que permitem uma ideia de conjunto ou de massa da cidade de
então. O flamengo S. Beninc, em outra vista desenhada em 1530-34,
representava também a margem do rio e já punha nela os Jerónimos e a Torre
de Belém. Estes monumentos, tal como a Madre de Deus e a Misericórdia,
exprimem um estilo que, contemporâneo do período dos Descobrimentos, a eles se
ajustou, com interpretação simbólica, em termos românticos, o manuelino, referido ao seu construtor, o
rei Manuel I. A Oeste, a
caminho da barra, ou a Leste,
as três igrejas e a bonita torre defensiva à beira-rio enriqueceram a cidade do
princípio de Quinhentos com edifícios sumptuosos nos seus lavores de pedra, que
marcaram uma época na história da arquitectura portuguesa, em Lisboa
especialmente expressa. Lisboa cujos
limites
ribeirinhos a nascente e a poente ficavam assim marcados pela Madre de Deus e
pelos Jerónimos.
Mas, mais importante que
estes monumentos pontuais, para a vida da cidade e para o seu processo urbanístico,
foi a lenta criação de um bairro novo, definido a par das muralhas ocidentais e
ao longo delas, desde o rio até ao ângulo de Noroeste, e acima deste, para a Cotovia.
Trata-se
da Vila Nova de Andrade, ou Bairro Alto de S. Roque, cuja
edificação regularizada se realizou desde os princípios de Quinhentos e ainda pelo
século seguinte, conforme estatutos sociais sucessivos. Todo o sítio fora
propriedade de um astrólogo e cirurgião judeu, valido dos quatro primeiros reis
da dinastia de Avis, mestre
Guedelha Palançano, cuja viúva, perante as perseguições à sua colónia realizadas
nos fins de Quatrocentos por Manuel I, se viu levada a vender as terras a dois
fidalgos da corte. Os herdeiros destes entenderam-se de modo que um deles, Bartolomeu
Andrade, cuja família já tivera casa nobre, a S. Pedro de Alcântara,
decidiu em 1513 uma larga operação
de loteamento logo posta em prática, a partir do rio. Tratou-se, a princípio,
de um caseamento algo irregular e modesto, destinado a habitação de artesãos e
marinheiros, gente ligada à expansão marítima, que se multiplicava e não tinha
já pouso na cidade, sobretudo após o terramoto de 1531 que a terá grandemente
prejudicado. A edificação foi rápida, açodada
por multas se ela tardasse mais de três anos, e ocupou uma primeira zona, até à
meia encosta marcada pela via que saía das Portas de Santa Catarina descendo
pelo Combro a caminho da Horta Navia. Acima dessa linha, num aclive
mais suave, pela altura de S. Roque até à Cotovia, onde os Andrades
tinham casa, outra urbanização se processou, de maior standing, envolvendo já palácios e casas nobres, ao fim do século e
em Seiscentos ainda (casas dos Ericeiras, Soures, Lumiares, Minas).
Registe-se que, em 1553, os Jesuítas
vieram instalar-se junto à cerca, no limite das terras dos Andrades, e o seu
renome e influência contribuíram sem dúvida para a nobilitação da Vila Nova
transformada em Bairro». In José Augusto França, Lisboa. Urbanismo e
Arquitectura, Director da Publicação Álvaro
Salema, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Livraria
Bertrand, série Artes Visuais, Instituto Camões, 1980.
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