Arqueologia na Grande Cidade
«(…) A criação de empresas
de arqueologia tem sido, também, um suporte importante e corrente para a
contratação e adjudicação de trabalhos arqueológicos, entendidos não já como
uma excepção ou um capricho, mas como uma componente indissociável da
preservação do património e dos próprios empreendimentos que os possam afectar.
E a disponibilidade destas equipas tem igualmente contribuído para a profissionalização da arqueologia,
entendida esta, cada vez, mais como uma função
operatória no âmbito mais vasto do
urbanismo e do território. Outras acções de caracter pedagógico são
outros tantos exemplos de como a arqueologia urbana, longe de se ser um
obstáculo, se pode constituir como uma mais-valia na intervenção na cidade, encontrando-se
neste caso as experiências bem sucedidas de musealização in situ de vestígios importantes. Mas também aqui há que agir com
cautela. Uma intervenção arqueológica é, pela sua natureza, fracturante,
indutora de falhas e interrupções no tecido urbano consolidado ou de nexos
coerentes pré-existentes, pelo que a musealização à outrance só deve ser encarada caso não prejudique a qualidade do ambiente
urbano. Preservar por preservar pode ser prejudicial para a homogeneidade de
um conjunto arquitectónico, e pode prejudicar a própria leitura de um
determinado conjunto patrimonial. O mesmo é dizer que o fundamentalismo (como
qualquer fundamentalismo, aliás...) pode ser prejudicial caso seja essa a via
escolhida, sendo que a criação de conhecimento através do registo arqueológico
pode também, em boa medida, ser uma posição legítima, desde que, claro está,
resulte de uma intervenção preventiva e não de um mero e precipitado salvamento
motivado por desleixo ou laxismo.
Uma das formas de
ultrapassar as dificuldades crescentes que os ciclos de obras públicas nas
grandes cidades tem criado decorre de um novo regime de conceptualização do espaço urbano. De facto, através dos
instrumentos administrativos das urbes, passam a existir parcelas de cidade
consideradas em si mesmas um monumento. Assim acontece, por exemplo, com a Baixa
de Lisboa a qual, independentemente da sua variabilidade e da sua
dinâmica própria se encontra classificada como Imóvel de Interesse Público.
Ora, da mesma forma que num monumento homogéneo e solidário fisicamente, como
um conjunto monástico, por exemplo, é impensável proceder a qualquer intervenção
que não seja precedida de investigação arqueológica, o mesmo deverá acontecer
nos conjuntos urbanos classificados, que devem ser entendidos como monumentos eles-mesmo, unos e
indivisíveis. Então será possível conceber todo esse conjunto como uma área de
intervenção delicada (e dedicada), com pressupostos arqueológicos
determinantes e condicionantes da suas alterações eventuais. E, este esforço de
conceptualização deve estender-se não apenas ao aparente, mas também ao
inaparente e ao que existe em potência, não revelada.
Nesta conformidade, será
possível promover cartas de património arqueológico
urbano, para além de dispositivos já contemplados em alguns PDM’s, com maior ou
menor eficácia, como seja a classificação funcional de áreas. Tais cartas
terão o mesmo valor que uma planta de redes soterradas, nas quais qualquer
alteração é cuidadosamente estudada. E terão outra consequência: a de levar
a assumir que determinadas partes da cidade não são pura e simplesmente
passíveis de qualquer intervenção em obra, ou seja, deverão ser consideradas reservas absolutas de informação
arqueológica. Eis o que poderia contornar com muito maior felicidade,
os problemas causados pelo ciclo, sensível nos anos 90, da criação de parques
subterrâneos e do alargamento da rede do metro. A inscrição da arqueologia
na história das cidades e na sua dinâmica não é, por isso mesmo, coisa
fácil. Em permanente mutação, a cidade convive mal com os estaleiros
arqueológicos. Mas a experiência acumulada, a atenção dos meios de comunicação da
arqueologia, permite afirmar que a arqueologia passou a ocupar um lugar
incontornável no desenvolvimento da memória das cidades antigas e modernas,
sobretudo se se tiver em conta que a arqueologia não se restringe a uma esfera
disciplinar hermética e impenetrável.
A arqueologia, especialmente em ambiente urbano, é hoje
entendida de uma forma integrada, sendo o testemunho arqueológico não apenas o
que jaz soterrado mas também tudo aquilo que, acima da cota 0, como se costuma dizer
na gíria patrimonial, é informação arqueológica, e histórica e
arquitectónica, ou seja, um modo de enriquecer o conhecimento do nosso habitat e das suas múltiplas dimensões,
incluindo, entre estas, uma quarta dimensão,
a da memória, imaterial». In Paulo Pereira, Arqueologia na Grande
Cidade, Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos (850º aniversário
da reconquista de Lisboa), Projectos Portos Antigos do Mediterrâneo, Acção
Piloto Portugal/Espanha/Marrocos, FEDER, Edições Afrontamento, Porto, 2001,
ISSN 0872-2250.
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