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NOTA: De acordo com o original
«(…) Depois,
fóra do theatro, ia sendo bombeiro, e, ainda mais que bombeiro, bombista!...,
isto é, brincalhão, farcista,
trocista, cassoista! Um Vivier, sem a trompa. E isto apesar do
trabalho, da seriedade, e até da gotta,
de que elle não soffre pouco. Ha casos em que sempre se tem medo d’elle como do
diabo, por seus artifícios e malefícios. A poder de phantasias e ratices chega
a attingir por vezes aos olhos da boa gente proporções phantasticas...
Dir-se-hia
que tem pés de gancho, e que exhala de toda sua pessoa um cheiro de enxofre...
Póde ser a alegria das creanças, mas não é o socego dos paes. Os menos prudentes,
tão depressa o vêem apparecer, tomam desde logo precauções injuriosas. Se é no campo
e se elle vae estar de hospede na mesma casa em que estejamos, tem uma pessoa todas
as noites de visitar o quarto, abaixar-se, ver bem por baixo da cama, remexer os
moveis, sondar as paredes, tapar o buraco da fechadura, dar tres voltas á chave
e guardal-a segura. E apesar d’este luxo de precauções ainda se fica inquieto...
Se elle
por ahi apparecesse... - Não; não pode ser! - Entretanto está uma pessoa assustada,
como Ulysses quando ouviu rebolar o rochedo com que Polyphemo lhe
fechou a caverna... Principiam sempre as hostilidades quando os convivas, munidos
cada um com a competente palmatória e vela de stearina, vão tranquilamente
para os seus quartos. Cahe de repente em cima d’elles uma chuva de travesseiros
e de almofadinhas, que apaga de repente as luzes. Pragas de um lado, risota do outro,
lá se accende a luz outra vez; e cada um, instruído já pela experiência, vae de
degrau em degrau abrigando a chamma com mão protectora...
Em se
estando deitado, misericórdia divina!, recomeçam as estrepolias com uma insistência de que não ha precedente na historia
dos povos. O armário dos irmãos Davenport era menos complicado do que as
peças que prega a todos este gaiato mor do paiz. Desgraçado de quem não tiver cautella
com elle. Está perdido. De varias occasiões, nas Caldas da Rainha, onde elle se
achava a fingir que tratava da sua gotta
impertinente, fez coisas incriveis a homens pacificos, incapazes de suspeitarem
que elle armasse laços de tal ordem á sua inexperiência.
Uns ficavam
sem sopa, outros ao recolher do Club
encontravam-se sem a chave do trinco, e tinham de arrombar a porta, ou de ir pedir,
á uma hora da noite, uma escada para trepar e entrarem pela janella... No meio de
uma noitada de folia e de risota, quando o nosso commum amigo P... que o havia
acompanhado áquella excellenle villa para tratar de uns padecimentos
rheumaticos que ás vezes o entreteem menos agradavelmente do que poderia ser,
ia deitar- se, promettendo a si próprio dormir emfim umas poucas de horas socegado,
o nosso homem metteu-lhe um castiçal nas mãos, e disse-lhe com expressões cortezes,
porém maliciosas, que lhe desejava uma feliz noite acompanhada de sonhos suaves
e propicios...
Levou
a sollicitude a um ponto, que se tornaria suspeito a um espirito de menos lealdade
e boa fé do que o do nosso amigo P. Elle não, achou tudo naturalissimo,
e a sua extrema confiança o perdeu. Despiu-se devagar, como quem saboreia antecipadamente
as delicias do repouso. Pendurou o fato nas costas da cadeira. Assoprou a luz.
Metteu-se pela cama dentro. Sem se estender todavia, para concentrar o calor do
corpo n’um espaço menor. - Ah!, dizia entre si. Quanto é agradável! Doce e benéfica
invenção da cama! Não é homem de juízo, o que não souber apreciar este bem! Lá o
diz o árabe: É melhor estar sentado que em pé, é melhor estar deitado que sentado!...
E todo
elle era satisfação.
Em seguida, por ir a dar-lhe o somno, e já
disposto a cerrar definitivamente as pálpebras, procurou a attitude em que deveria
encontrar-se de manhã ao acordar. E estendeu as pernas... N’esse instante
invadiu-lhe o corpo todo uma sensação desagradabilissima. Entornára-se-lhe nos pés
um alguidarinho cheio de agua, e ia já a chegar-lhe aos quadris proporcionando-lhe
um banhosito glacial.
Saltou para o chão, aos berros; acudiram-lhe; e o rumor publico
accusou o nosso heroe de ter a culpa d’esta vasta historia, emquanto o pobre amigo,
a praguejar contra a sorte e contra os humanos, levou a noite a tiritar num canapé!»
In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo
Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar
1968, University of Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT