quarta-feira, 25 de junho de 2014

Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «Vive-se ainda num permanente estado de confusão entre o sagrado e o profano, entre o real e o irreal, entre o pecado e o prazer, entre o terror e o fascínio, entre a medicina e a bruxaria»

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O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
«(…) Mas contradizendo as normas, a prática real e quotidiana, no que toca às relações mais íntimas, apresenta duas vertentes distintas: uma marcada pelo acto sexual moderado e frequentemente sem amor, com vista à procriação; e outra, de relações extraconjugais, que se abrem à afectividade e ao prazer. No que toca a comportamentos sexuais como a sodomia e o pecado nefando, além de proibidos, são profundamente condenáveis do ponto de vista moral. Apesar disso, estes práticas continuam a ser frequentes. O século XVI é marcado pelo medo dos três demónios tradicionais: a fome, a peste e a guerra. É de algum modo relacionado com estes factores que o movimento de perseguição a minorias, nomeadamente aos judeus, se agudiza. O homem desta época vive permanentemente assolado pelo medo, sendo permeável a manipulações ideológicas veiculadas pelos sermões inflamados do púlpito. Por outro lado, não encontra total conforto na vivência religiosa, porque se vai também fermentando o temor de Deus, dos seus insondáveis desígnios, da punição divina, da morte, do juízo final. A morte está, além disso, omnipresente. As pestes, a violência, a fome, as penas de morte e talhamento de membros, as altas taxas de mortalidade infantil, apresentam cenários de morte a todo o momento e em toda a parte. Assiste-se a uma progressiva mudança da forma de entender a morte, que tende a deixar de ser uma obcessão macabra, mudança acompanhada pelas Artes moriendis (os tratados da boa morte), sendo agora aceite como algo de fundamentalmente humano, a prova suprema que o homem tem de enfrentar.
Em contraponto, existem as festas, populares e, por definição, profanas, quase carnavalescas, transbordantes de riso e exuberância, numa tentativa inconsciente de inversão dos valores do quotidiano. Esta presença do profano é tão real como a presença do religioso. Os messianismos e as manifestações privadas ou colectivas de misticismos exacerbados e quase heréticos são disso exemplo. Na verdade, o homem do século XVI e XVII é supersticioso, envolvendo-se muitas vezes em magias, astrologias e feitiçarias, na tentativa de controlar o incontrolável: a sua vida. Este homem vive um quotidiano violento, cruel e intolerante. A sobrevivência é um problema diário para a grande maioria. As pessoas sentem-se frágeis, pessimistas quando tentam vislumbrar o seu futuro, tornando-se quase obcecadas pela ideia de fortuna e sina. Por outro lado, a existência de um destino pré-traçado para cada indivíduo, desresponsabiliza-o das suas escolhas e desculpabiliza-o dos seus pecados. Mas a culpa persiste, teimosa, levando-o ao confessionário, para ele um alívio temporário, para a Igreja o veículo, por excelência, de controlo das mentalidades. O sentimento de culpa, sempre associado ao de pecado, constituem vectores de extrema força e carregados de grande negatividade, que norteiam as vidas de toda a gente. Vive-se ainda num permanente estado de confusão entre o sagrado e o profano, entre o real e o irreal, entre o pecado e o prazer, entre o terror e o fascínio, entre a medicina e a bruxaria. É este antagonismo e esta contradição constantes, quer em toda uma época, quer na vida dos indivíduos.

Sei que a minha alma tem o poder de tudo conhecer
e, no entanto, ela é cega e tudo ignora;
sei que sou um dos pequenos reis da Natureza
e, no entanto, o escravo das coisas mais baixas e vis;
sei que a minha vida é apenas dor e instante.
Sei que os meus sentidos me enganam como um homem
ao mesmo tempo orgulhoso e miserável.

Facto que vem alterar muitas das concepções vigentes é o movimento dos Descobrimentos. Não sendo um movimento artístico, filosófico ou ideológico, representa uma mudança diferente e efectiva nas vivências. As noções de espaço, mais alargadas e abrangentes, passam a estar intimamente ligadas com os aspectos de geo-estratégia política e económica. A partir daqui, estados e nações não se restringem às suas fronteiras, abarcando territórios para lá do mar oceano. As possibilidades económicas (de exploração e comércio de novos recursos bem como de escoamento de produtos) abrem-se em leques inesperados de oportunidade e riqueza. A simples descoberta de novos territórios, de características absolutamente desconhecidas até então, e o contacto com outros povos de diferentes culturas e costumes, provocam nas populações desta época mudanças de perspectiva e entendimento». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da U. do Porto/JDACT