O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
(…) O desenvolvimento de
novas ciências ligadas à navegação, o alargamento dos conceitos de tempo, cujo
controlo se torna essencial para tirar partido das marés, produtos, rotas e
prazos, o desfazer de mitos e medos, o desenvolvimento de novas actividades e
capacidades, são tudo factores de extrema importância decorrentes dessa
conquista, que marcam e interferem na vida quotidiana do século XVI.
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
Teremos por certo que
o antagonismo entre o povo de Israel e o peninsular existia já nos tempos
obscuros, de que a história não conserva registo. - Os judeus
frequentavam ao domingo as igrejas, recebiam os sacramentos, mas (...) nunca
nas almas lhes tocou mácula, antes sempre tiveram imprimido o selo da antiga
lei -.
A religião, entendida no
sentido de vivência interna e espiritual, a
dimensão da fé, e no sentido exteriorizável e partilhado em comunidade, a dimensão do ritual, tem um peso tangível
efectivo no quotidiano dos homens e das mulheres de quinhentos e seiscentos.
Ela pode ajudar a compreender e a explicar muitos dos antagonismos que surgem
entre cristãos e judeus. A primeira citação reporta-se a esse choque intestino,
cuja origem se perde na noite dos tempos. Segundo Lúcio Azevedo, a primeira
perseguição aos judeus da Península, que está documentada, data do ano de 613, do reinado de Sisebuto, que
ensaiou
uma tentativa de expulsão de todos os judeus, à excepção dos que aceitassem a
religião católica.
A forma de ver a crença
numa determinada religião e a forma como ela é vivida eram noutros tempos muito
diferentes das actuais. Nesta época, tão desconhecida
era a ideia de tolerância religiosa, como as vias férreas e os telégrafos.
Contudo, aceitar que a intolerância religiosa era moeda corrente, pelo facto de
ser desconhecido o conceito hodierno de tolerância, talvez seja irmos longe
demais. Se assim fosse, como explicar que Francisco Gomes, cristão-novo, natural
de Sesimbra e morador em Setúbal, homem simples e sem formação, preso pelo
Santo Ofício (maldito) em 1560 sob a acusação de proferir
palavras contra a fé, tenha declarado, após quatro sessões de interrogatório e
depois de ser posto a tormento no polé, que isto
da Inquizição é ipocresia?
Seja qual for o conceito
e o grau de tolerância então existentes, muitos cristãos viam nos judeus os
causadores da morte de Cristo e os responsáveis por todos os males e desgraças
que recaíam sobre as comunidades cristãs. Deles se dizia que (…) os tem Deus assinalados, como expressão
do seu desprezo; exalam um cheiro mau, que só com o baptismo se dissipa; ao
falarem, cospem-se por si e uns aos outros nas barbas, em castigo de haverem
cuspido a Cristo quando o martirizaram; os de sexo masculino são menstruados,
provavelmente também por castigo... Dizia-se ainda que tinham apêndices
caudais, que praticavam cópula com animais, que a sua natureza era falsa e
traidora como a de Judas, que eram culpados de todas as moléstias e a razão
pelo descontentamento de Deus para com os cristãos. Desde muito cedo a
legislação tende, aliás, a travar a livre circulação dos judeus, quer em termos
físicos quer em termos sociais. São obrigados a viver dentro da judiaria e a
dela não poderem sair durante a noite. Estão impedidos de se ausentar do país
sem um salvo-conduto régio. É-lhes proibido o casamento com cristãos. Não podem
ter escravos cristãos. Não têm acesso a cargos públicos. Não podem exercer a
profissão de colector de impostos. São-lhes vedadas também as profissões de
boticário e médico, com base na ideia peregrina de que boticários e médicos
judeus quintavam os
seus doentes, isto é, matariam um em cada cinco. Há ainda indícios de que não
poderiam barbear-se, nem cortar o cabelo como cristãos.
Estas posturas
aparecem-nos nas Ordenações Afonsinas, com o estatuto de leis gerais do
reino de Portugal, vindo posteriormente a ser actualizadas e acrescentadas
pelos vários monarcas, alegadamente, em resposta a exigências das facções
antijudaicas da população. Mas há restrições e imposições oriundas sobretudo da
Santa Sé. É o caso das determinações que resultam do Concílio de Latrão
em 1215, assinado pelo Papa
Inocêncio III. É o caso da obrigatoriedade de todos os judeus trazerem nas vestes
um distintivo que mostrasse a sua condição, medida que teve consequências graves
para a convivência dos homens e mulheres da lei de Moisés dentro das comunidades
cristãs». In Raquel Patriarca, Um
Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal,
1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Porto, 2002.
Cortesia da U. do
Porto/JDACT