(…)
Ao Violão
«Manhã
de Junho. O céu é rubro. A lua, tonta
de somno,
vae tombando… O sol no azul desponta
apagam-se
de todo os astros: pyrilampos
que scintillam
do céu nos azulados campos.
Dos olivaes
do monte o rouxinol diz missa
à natureza
que o ouve, extactica e submissa.
Os passaros
gentis, vindos á luz este anno,
andam
em bando, aos mil, n'um labutar insano,
a alluir,
a desfazer com o biquito e as azas,
os ninhos
virginaes, as suas aéreas casas
a luz
do sol, desperta a aldeia socegada:
os carros
da lavoira alongam-se, na estrada.
D’um misero
casal, á soleira da porta,
uma velhinha
magra e doente, quasi morta,
fia na
sua roca o linho das estrigas.
Muito
ao longe no monte, algumas raparigas
andam
á lenha. Sim; já canta a cotovia:
é preciso
cuidar da refeição do dia…
Vêm-se
ao collo das mães, pequenos, a gritar,
despenteados,
sem graça, immundos, por lavar.
E vê-se,
além, passando, a multidão cristã
que vae
para a capella ouvir a missa aldeã.
E eu,
mal caiu no oceano a derradeira estrella,
abri a
larga, antiga, hierática janella,
deixei
que o ar lavasse os meus pulmões e vim
postar-me,
doce amada!, ao pé do teu jardim.
Dormes
ainda, eu sei: a tua alma habita,
Nesse
Paiz, além da abobada infinita…
Mas sei
que tu, de mãos cruzadas sobre o peito,
estás,
alli, n’um branco e pequenino leito.
Assim
não ouves, não, uma canção secreta
que eu vibro, baixo e baixo, em meu violão de poeta.
Acorda,
meu Amor! Levanta-te, creança!
Desprende
ao vento a longa e emmaranhada trança.
Ajudo-te
a fazer, (por que isso me compete),
a tua
delicada e simplice toilette.
Só te
verá o mar, esse discreto velho…
O lago
do jardim será o teu espelho.
E, escuta!,
banhar-te-has, n’um cálice de rosa:
para
o teu corpo, flor!, é uma tina espaçosa!...
Hei-de
enxugar-te o corpo, á luz dos meus desejos,
e cobrir
te-hei, depois, com um lençol de beijos!
Vamos!
Acorda, amor! Levanta-te do ninho!
Descerra
o meigo olhar; veste o roupão de arminho,
e vem
comigo, vem, por esses campos fora:
espera-nos
o almoço a que preside a Aurora!
Ah,
quanto é bello vêr a natureza era festa!
Que harmonias
sem fim, nos ramos da floresta!
Como é
viril e grande a voz que sae da Terra,
e vae
de praia em praia, e vae de serra em serra!
As rolas
passam, longe... e não sei que ave canta:
que muzica
divina e explendida garganta!
Mais uma
vez: acorda! As doces cotovias
clamam
por ti do ceu e mandam-te os Bons Dias.
[…]
António
Nobre
O SÓ já hoje se inscreve no número das obras
clássicas da literatura portuguesa e a notoriedade que disfruta, justa e calorosa,
garante bem que será lido e amado enquanto se falar a nossa língua. Já no presente
as Antologias arquivam trechos seus, criteriosamente escolhidos como paradigmas
de beleza poética, na suavidade e equilíbrio do ritmo e no surto alto da inspiração,
que o desprende da chateza dos versificadores vulgares e o arremessa para as
regiões da violenta emoção, a única, ao certo, em que se aprovisionam de ar suficiente
e vital os pulmões dos grandes Poetas e Artistas, e longe da qual eles asfixiam
e abrem cavernas. Fora disto, muito acima deste culto semi-oficial, o que se apresenta
como mais importante, como mais impressionante, pelo seu significado de espontaneidade,
é a corrente de leitores, livres da menor coacção, cada vez engrossando mais e mais
e erguendo em uníssono coro as suas vibrantes confianças do encantamento sentido,
num contágio de indignação que não abranda de vitalidade por mais anos que passem
e outros livros também de valor surjam a provocar a atracção simpática do publico.
Três
edições conta já o SÓ, todas excedendo,
pelas suas tiragens avultadas, a magreza clássica das edições do nosso estreito
mercado literário, que então em livros de versos (e isto é num país de poetas!)
é duma debilidade irrisória. Pelo contraste ressaltante deste facto mais avulta
ainda o sucesso da obra de António Nobre, ao presente por
completo esgotada e sem grandes esperanças
de ser em breve reeditada de novo, por incompreensível recusa da família do Poeta
às instâncias que nesse sentido de várias partes lhe têem sido feitas. Segundo depoimento
de A
Águia, só do Brasil chegam frequentemente encomendas de 100, 500 e 1.000
exemplares, que, está claro, pela infeliz circunstância apontada, não podem ser
satisfeitas. Assim, sobre os raros exemplaresque aparecem à venda, em liquidações
de bibliotecas particulares e fundos de livraria, a especulação galopa infrene,
cabriola, delira. Por exemplares das 2.ªs e 3.ªs edições surgem ofertas gradas,
de cinquenta escudos e mais. Quanto aos da edição princeps, os poucos felizes que hoje os possuem, aferrolham-nos
ciosamente, em ímpetos de bibliófilos avaros e loucos». In César de Frias, A Afronta a
António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library
University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
Cortesia
de L. Central/JDACT