domingo, 6 de julho de 2014

A Afronta a António Nobre. César de Frias. «… o sucesso da obra de António Nobre, ao presente por completo esgotada e sem grandes esperanças de ser em breve reeditada de novo, por incompreensível recusa da família do Poeta…»

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(…)
Ao Violão
«Manhã de Junho. O céu é rubro. A lua, tonta
de somno, vae tombando… O sol no azul desponta
apagam-se de todo os astros: pyrilampos
que scintillam do céu nos azulados campos.
Dos olivaes do monte o rouxinol diz missa
à natureza que o ouve, extactica e submissa.
Os passaros gentis, vindos á luz este anno,
andam em bando, aos mil, n'um labutar insano,
a alluir, a desfazer com o biquito e as azas,
os ninhos virginaes, as suas aéreas casas
a luz do sol, desperta a aldeia socegada:
os carros da lavoira alongam-se, na estrada.
D’um misero casal, á soleira da porta,
uma velhinha magra e doente, quasi morta,
fia na sua roca o linho das estrigas.
Muito ao longe no monte, algumas raparigas
andam á lenha. Sim; já canta a cotovia:
é preciso cuidar da refeição do dia…
Vêm-se ao collo das mães, pequenos, a gritar,
despenteados, sem graça, immundos, por lavar.
E vê-se, além, passando, a multidão cristã
que vae para a capella ouvir a missa aldeã.

E eu, mal caiu no oceano a derradeira estrella,
abri a larga, antiga, hierática janella,
deixei que o ar lavasse os meus pulmões e vim
postar-me, doce amada!, ao pé do teu jardim.
Dormes ainda, eu sei: a tua alma habita,
Nesse Paiz, além da abobada infinita…
Mas sei que tu, de mãos cruzadas sobre o peito,
estás, alli, n’um branco e pequenino leito.
Assim não ouves, não, uma canção secreta
que eu vibro, baixo e baixo, em meu violão de poeta.

Acorda, meu Amor! Levanta-te, creança!
Desprende ao vento a longa e emmaranhada trança.
Ajudo-te a fazer, (por que isso me compete),
a tua delicada e simplice toilette.
Só te verá o mar, esse discreto velho…
O lago do jardim será o teu espelho.
E, escuta!, banhar-te-has, n’um cálice de rosa:
para o teu corpo, flor!, é uma tina espaçosa!...
Hei-de enxugar-te o corpo, á luz dos meus desejos,
e cobrir te-hei, depois, com um lençol de beijos!
Vamos! Acorda, amor! Levanta-te do ninho!
Descerra o meigo olhar; veste o roupão de arminho,
e vem comigo, vem, por esses campos fora:
espera-nos o almoço a que preside a Aurora!
Ah, quanto é bello vêr a natureza era festa!
Que harmonias sem fim, nos ramos da floresta!
Como é viril e grande a voz que sae da Terra,
e vae de praia em praia, e vae de serra em serra!
As rolas passam, longe... e não sei que ave canta:
que muzica divina e explendida garganta!
Mais uma vez: acorda! As doces cotovias
clamam por ti do ceu e mandam-te os Bons Dias.
[…]
António Nobre

O já hoje se inscreve no número das obras clássicas da literatura portuguesa e a notoriedade que disfruta, justa e calorosa, garante bem que será lido e amado enquanto se falar a nossa língua. Já no presente as Antologias arquivam trechos seus, criteriosamente escolhidos como paradigmas de beleza poética, na suavidade e equilíbrio do ritmo e no surto alto da inspiração, que o desprende da chateza dos versificadores vulgares e o arremessa para as regiões da violenta emoção, a única, ao certo, em que se aprovisionam de ar suficiente e vital os pulmões dos grandes Poetas e Artistas, e longe da qual eles asfixiam e abrem cavernas. Fora disto, muito acima deste culto semi-oficial, o que se apresenta como mais importante, como mais impressionante, pelo seu significado de espontaneidade, é a corrente de leitores, livres da menor coacção, cada vez engrossando mais e mais e erguendo em uníssono coro as suas vibrantes confianças do encantamento sentido, num contágio de indignação que não abranda de vitalidade por mais anos que passem e outros livros também de valor surjam a provocar a atracção simpática do publico.
Três edições conta já o , todas excedendo, pelas suas tiragens avultadas, a magreza clássica das edições do nosso estreito mercado literário, que então em livros de versos (e isto é num país de poetas!) é duma debilidade irrisória. Pelo contraste ressaltante deste facto mais avulta ainda o sucesso da obra de António Nobre, ao presente por completo esgotada e sem grandes esperanças de ser em breve reeditada de novo, por incompreensível recusa da família do Poeta às instâncias que nesse sentido de várias partes lhe têem sido feitas. Segundo depoimento de A Águia, só do Brasil chegam frequentemente encomendas de 100, 500 e 1.000 exemplares, que, está claro, pela infeliz circunstância apontada, não podem ser satisfeitas. Assim, sobre os raros exemplaresque aparecem à venda, em liquidações de bibliotecas particulares e fundos de livraria, a especulação galopa infrene, cabriola, delira. Por exemplares das 2.ªs e 3.ªs edições surgem ofertas gradas, de cinquenta escudos e mais. Quanto aos da edição princeps, os poucos felizes que hoje os possuem, aferrolham-nos ciosamente, em ímpetos de bibliófilos avaros e loucos». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

Cortesia de L. Central/JDACT