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A década de 50 e as Córnio
«(…) Neste sentido, as Córnio
ressuscitam o e tudo que o
futurismo de Almada anunciara, ou, em bloco e no campo do ensaio, anseiam ser o
quarto número que não houve de Orpheu. Tem José-Augusto França
consciência de que a sua iniciativa é tocada pelo furor do novo, anunciando um Portugal que não existe?
Em Nota servindo de prefácio,
publicada em Unicórnio, Maio de 1951, o autor escreve que os
textos e gravuras escolhidos exprimem uma maneira actual de encarar a realidade,
considerando que os autores que participam nas Córnio possuem uma
maneira aparentada de perspectivar a
realidade e reitera que actualidade
(ser actual)
é o que nas suas páginas se pretende registar. Com efeito, o pensamento être absolument moderne, de
Rimbaud, preenche na totalidade a consciência de França e as Córnio constituem, na década de 50, a sua
maneira de o ser. Estaria Portugal
culturalmente preparado para uma revista absolutamente moderna? Não,
não estava. Salazar recusara a abertura política pós-II Guerra Mundial, o perigo vermelho de Estaline, dividindo a
Europa em duas, suavizara o juízo das democracias europeias sobre o regime do
Estado Novo, Alfredo Pimenta lançara o grito integralista o comunismo. Inimigo N.º 1, de novo Portugal se radicalizava,
extremava, desenhando um mundo a preto e branco, António Sérgio e Vieira de
Almeida lançavam para a arena um general de pensamento inconsistente que ousava
declarar que Portugal também era Europa, Portugal merecia ser absolutamente moderno, Salazar não
perdoou, endureceu-se, encarniçou-se e mandou reprimir, repetindo o gesto
amordaçante de princípios da década de 30, fechando-se
e fechando Portugal a novo intento de modernidade. O modernismo falhara
culturalmente com Pessoa, Almada e Mário de Sá Carneiro, dez anos depois
falhara com José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. O
terceiro modernismo, o de José-Augusto França, de Jorge de Sena, Eduardo Loureço,
teria pior destino, anunciara-se para logo se falhar, esboçado em revistas sem
continuidade, ao longo da década de 50. Os seus autores experimentaram o
livor da aurora, sem comungarem da claridade da madrugada. Eram netos de avós
que maioritariamente o Portugal institucional não reconhecia. Entre
a aurora e a madrugada, as labaredas da fogueira da liberdade tinham sido
espevitadas, mas o cinzento-escuro dos fatos oficiais do regime
político tinha-lhes quebrado o vigor. O
fogo da modernidade falhara de novo.
No dia 31 de Dezembro de
1956, França fechou o ciclo das Córnio, no ano seguinte
escreveu um espantoso Primeiro Diálogo sobre Arte Moderna,
resgatou o seu amigo Amadeo narrando-lhe
a obra, publicou um conjunto de contos, que intitulou, bem a propósito, Despedida
Breve, e partiu, certamente tão falhado quanto Portugal estava. Um
dolente sentimento de amargura devia cobrir-lhe as faces, França presumia ter falhado a sua juventude. Afinal, cumprira apenas
o permanente ritual de iniciação do intelectual português, de Sá de Miranda
a António Damásio, de Camões a Agostinho da Silva. França, agora, não era só França, tornara-se a personificação da
imagem permanente da cultura portuguesa, de Francisco Sanches e padre
António Vieira a Alexandre Herculano e Almeida Garrett, de Damião de
Góis a Eça de Queirós, de João de Castro neto a Sampaio Bruno, Eduardo
Lourenço e António José Saraiva, buscando Portugal fora de Portugal, como
Ulisses penitente buscando a sua Ítaca, foi encontrá-la em Paris.
As Córnio fechavam,
o jovem França morria, nascia o
especialista em arte. O fato cinzento que vestia Portugal entrava em guerra,
enlutando o país e bloqueando a modernidade… até à inteira madrugada em que de novo o espírito das Córnio saiu
à rua, em 25 de Abril de 1974». In Miguel Real, Fontanelas, 23 de Agosto de
2006
Conversa com José Régio. Post-facio a toda a obra ou de par ma chandelle verte
Este é o último número
duma revista que falhou. Eu explico.
O Unicórnio foi
publicado em 1951, e pensava eu
então em fazer sair de três em três meses um número; ou só três por ano, ou
apenas dois, como depois fui levado a projectar. Ao fim de quase seis anos,
saíram cinco números. Nem anual foi. Ao mesmo tempo, outras revistas foram aparecendo
e desaparecendo em números mais baixos, a maior parte delas. Escusado será
dizer que nenhuma consolação tiro desse facto, mas dele tenho que tirar ajuda
para a lição que veremos. Dizia eu que esta revista falhou. Tive, nisso,
inevitáveis culpas, é claro. Mas muitas não as tive eu, e outras, embora as tivesse
tido, não serão minhas. As primeiras conheço-as mal. Má direcção? Naturalmente, sim. Demasiada ambição? Isso com certeza.
A demasiada ambição que
foi um defeito confessado, vai porém de mim para os outros, e finalmente
assenta nos colaboradores da revista. Escolhi os que escolhi e dentro das
amplas, livres e actuais opiniões europeias que se pretendia propor e discutir,
poucos escolhíveis ficaram de fora destas trezentas e tantas páginas
publicadas. Não me queixo, evidentemente nem de uns nem de outros, mas dos
terceiros, daqueles que não podiam caber na revista. Porque se eles pudessem ali caber seriam mais e suficientes os
primeiros, e a revista não acabaria». In José Augusto França, Inicórnio, Etc.,
Mostra Documental, 2006-2007, Apresentação de Biblioteca Nacional, 2006, A
década de 50 e as Córnio, Miguel Real,
ISBN 978-972-565-413-2.
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