Tratado Único. Como para Furtar há Arte, que é ciência
verdadeira
«(…) As artes dizem seus autores que são emulações da natureza; e dizem
pouco, porque a experiência mostra que também lhe acrescentam perfeições. Deu a
natureza ao homem cabelo e barba, para autoridade e ornato; e se a arte não compuser
tudo, em quatro dias se fará um monstro. Com arte repara uma mulher as ruínas
que lhe causou a idade, restituindo-se de cores, dentes e cabelo, com que a natureza
no melhor lhe faltou. Com arte faz o escultor do tronco inútil uma imagem tão
perfeita que parece viva. Com arte tiram os cobiçosos, das entranhas da terra e
centro do mar, a pedraria e metais preciosos, que a natureza produziu em tosco
e, aperfeiçoando tudo, lhe dão outro valor. E não só sobre coisas boas têm as
artes jurisdição, para as melhorar mais do que a natureza; mas também sobre as más
e nocivas, para as diminuir em proveito de quem as exercita, ou para as
acrescentar em dano de outrem, como se vê nas máquinas da guerra, partos da arte
militar, que todas vão dirigidas a assolações e incêndios, com que uns se
defendem e outros são destruídos.
Não perde a arte seu ser por fazer mal, quando faz bem e a propósito
esse mesmo mal que professa, para tirar dele para outrem algum bem, ainda que
seja ilícito. E tal é a arte de furtar, que toda se ocupa
em despir uns para vestir outros. E se é famosa a arte que, do centro da terra,
desentranha o oiro, que se defende com montes de dificuldades, não é menos
admirável a do ladrão que das entranhas de um escritório, que, fechado a sete
chaves, se resguarda com mil artifícios, desencova com outros maiores o tesouro
com que se melhora de fortuna. Nem perde seu ser a arte pelo mal que causa,
quando obra com ciladas segundo suas regras, que todas se fundam em
estratagemas e enganos, como as da milícia; e essa é a arte, e é o que dizia um
grande mestre desta profissão: con
arte y con engaño, vivo la mitad del año; y con engaño y arte vivo la otra parte.
E se os ladrões não tiverem arte, busquem outro oficio; por mais que a este os
leve e ajude a natureza, se não alentarem esta com os documentos da arte, terão
mais certas perdas que ganhos, nem se poderão conservar contra as invasões de
infinitas contrariedades que os perseguem. E, quando os vejo continuar no
oficio ilesos, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte, que os
livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos ou obrigando-a
que os largue e tolere, porque até para isso têm os ladrões arte. Assim se
prova que há arte de furtar; e que esta seja ciência verdadeira é muito mais
fácil de provar, ainda que não tenha escola pública, nem doutores graduados que
a ensinem em universidade, como têm as outras ciências. [...]
Como a Arte de Furtar é muito nobre
Mais fácil achou um prudente que seria acender dentro do mar uma
fogueira que espertar, em um peito vil, fervores de nobreza. Contudo, ninguém
me estranhe chamar nobre à arte cujos professores, por leis divinas e humanas,
são tidos por infames. Essa é a valentia desta arte, como a dos alquimistas,
que se gabam que sabem fazer oiro de enxofre, que de gente vil faz
fidalgos, porque aonde luz o oiro não há vileza. Além de que não é implicação
acharem-se duas contrariedades em um sujeito, quando respeitam diferentes
motivos. Que coisa mais vil e baixa que uma formiga! Tão pequena que não se
enxerga, tão rasteira que vive enterrada, tão pobre, que se sustenta de leves
rapinas! Que coisa mais ilustre que o sol que a tudo dá lustre, tão grande que
é maior que a terra, tão alto que anda no quarto céu, tão rico que tudo produz!
E se vê a maior nobreza com a maior baixeza em um sujeito, em uma formiga.
Baixezas há que não andam em uso, porque são só de nome; e nomes há que
não põem nem tiram, ainda que se encontrem, porque se compadecem para
diferentes efeitos. Fazia doutrina um padre da Companhia, no pelourinho de
Faro. Perguntou a um menino como se chamava. Respondeu: chamo-me, em casa, Abraãozinho, e
na rua Joanico. Assim são os ladrões: na Casa da Suplicação, chamam-se
infames, quando os sentenciam, que é poucas vezes; mas nas ruas, por onde andam
de contínuo em alcateias, têm nomes muito nobres, porque uns são Godos, outros
chamam-se Cabos e Xerifes outros; mas nas obras todos são piratas». In
Manuel da Costa, Arte de Furtar, 1ª edição de 1743 ou 1744, Lisboa, Editorial
Estampa, 2001, Fundação Calouste Gulbenkian.
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