Variações sobre uma Ideia de Oriente
«(…) Segundo Edward Said, a palavra orientalismo tem três significados distintos
que se podem naturalmente entrecruzar em momentos diversos da história do
Ocidente. Em primeiro lugar, o orientalismo descreve a actividade académica,
habitualmente realizada nos diferentes Institutos Orientais, que se centra no
estudo e na investigação de diferentes tópicos, sejam eles artísticos ou
filosóficos, linguísticos ou religiosos, das múltiplas culturas designadas como
orientais. Em segundo lugar, deparamos com um sentido de orientalismo
preocupado em estabelecer a distinção entre os modos de ser do Oriente e do
Ocidente. Nesta tarefa, estão envolvidos não tanto académicos, mas antes figuras
centrais da arte e da cultura ocidental, como é o caso de romancistas, poetas,
filósofos e historiadores. Said designa este tipo de pensamento como orientalismo do imaginário, que constantemente
dialoga com o orientalismo universitário. Em terceiro lugar, o autor enfatiza a
existência de um terceiro tipo, nem universitário nem imaginário, de natureza
mais política, interessado em definir o estilo mais apropriado de administração
das regiões colonizadas pelos diferentes estados europeus.
O entrelaçamento destas três formas de orientalismo (académico,
imaginário e político) tem na Índia, nos finais do século XVIII, uma
exemplificação perfeita. Hastings, governador inglês de Bengala, decide
melhorar a administração vigente e, em conjunto com a Companhia das Índias Orientais,
promove o estudo dos textos sagrados da cultura indiana, envolvendo nessa
tarefa, entre outros, um conhecedor do sânscrito, Wilkins. A publicação destas
traduções, directamente financiadas pela gestão inglesa, galvanizará a
imaginação ocidental desde o filósofo Emerson (a figura mais proeminente do transcendentalismo
filosófico americano) até aos irmãos Schlegel (August e Friedrich), na
Alemanha. Três formas de viver o Oriente, mas que, ao cruzarem-se a um ponto
tal no início do século XIX, possibilitam a proposição, sem dúvida ousada,
segundo a qual aquilo a que chamamos o romantismo
não teria sido possível no Ocidente sem a presença hipnótica de um Oriente,
desse sonho colectivo da Europa sobre o Oriente. É interessante assinalar
que, na mesma época em que a Coroa britânica geria com argúcia a simbiose dos
três tipos de orientalismo, deu-se um acontecimento histórico igualmente
marcante na história do Ocidente: a invasão do Egipto pela tropas napoleónicas
em 1798. E, uma vez mais, vemos o
cruzamento destes três orientalismos, desde o cuidado extremo da administração
francesa em não ferir as sensibilidades autóctones a um ponto tal que Napoleão
era apresentado como o Muhammad ou Maomé Ocidental, até à presença de um
corpo de estudiosos e académicos da mais variada proveniência (arqueólogos,
químicos, biólogos) que criarão as bases da criptologia contemporânea
habitualmente consignada na figura lendária de Champollion. A esta dupla
vertente do orientalismo francês, político e académico, junta-se a voz do
orientalismo da imaginação, corporizado, entre outros, pelo escritor Victor
Hugo. Autor das Orientais, Victor Hugo não hesitará em afrmar que, se no século
de Luís XIV ainda se poderia ser helenista, agora é-se orientalista. Este escritor
irá ainda mais longe e dir-nos-á que o impacto do Oriente na nossa cultura só é
comparável à descoberta da tradição helénica pelos renascentistas. Mas se,
graças ao esforço de académicos como Wilkins ou William-Jones, se descobrem
obras como a Sakuntalá, entre outras, o Oriente que sobressai é directamente
proporcional ao seu poder de impacto sobre a identidade ocidental. Schlegel, o
filósofo e escritor alemão dos princípios do século XIX, não poderia ser mais
claro: É no Oriente que devemos procurar
o romantismo mais elevado. O Oriente não é tanto perspectivado à luz das
suas diferentes culturas, mas mais como uma categoria de inteligibilidade da
evolução cultural do próprio Ocidente». In Carlos João Correia, Variações sobre uma
Ideia de Oriente, João Gouveia Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao
Fundo da História em Busca do Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de
Coimbra, 2003, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.
Cortesia da U. de Coimbra/JDACT