A Cidade Manuelina e Filipina
«(…) Em 1527 o bairro contava já 408 fogos (cerca
de 1600 habitantes) e, em 1554
ou 55, o Sumário de Cristóvão
Rodrigues já mencionava cinco ruas traçadas no sentido Norte-Sul e duas no
sentido Nascente-Poente, na freguesia do Loreto; a malha virá a adensar-se,
mas respeitando o traçado fundamental de então. Uma planta de 1650 nos mostrará o bairro perfeitamente
desenhado, a noroeste da cidade; e, pela mesma altura, um cronista da
Companhia, dirá que ele era uma bastante
cidade, de ruas belas, o mais gabado da cidade, com os seus
edifícios grandiosos e mui nobres, de traça moderna e romana,
em tudo dignos de fidalgos ilustres
que passavam a habitá-lo. O Bairro Alto marca a passagem do século XVI
para o XVII na vida urbana de Lisboa, e a aquisição de uma consciência
urbanística e arquitectónica que ao longo de Seiscentos se processou, a partir
e em grande parte graças à ocupação espanhola que trouxe à capital portuguesa a
influência da civilização castelhana no momento em que nela se desenvolvia a
grande arquitectura do Siglo d’Oro.
Depois de 1640, o movimento
continuou dentro do espírito adquirido, até inícios de Setecentos, quando se
verificará uma clivagem cultural no País.
Filipe II, I de
Portugal, apressou-se a vir tomar posse da nova coroa dos Áustrias, e logo
em 1581 passou ano e meio em Lisboa,
recebido com os primeiros arcos de triunfo de uma arquitectura de festa maneirista,
elevados no Terreiro do Paço, sítio de festejos, de procissões e autos-de-fé,
de touradas, de mercado também. Logo ali Filipe II desejou transformar o paço
manuelino numa habitação régia condigna e para isso empregou um arquitecto e engenheiro
militar bolonhês estabelecido em Portugal desde 1577, Filippo Terzi, com quem Herrera, o grande arquitecto
do Escorial, se entendeu, ficando como muito provável orientador da obra. Esta
consistiu, principalmente, num maciço mas elegante torreão quadrangular (o torreão
de Tércio) com 15 a 20 metros de lado, cúpula e lanternim, edificado na
extremidade do pavilhão manuelino, cujo corpo sofreu também enorme modificação
monumentalista, passando a ocupar toda a face poente do Terreiro. Em 1619, quando da visita de Filipe III a
Lisboa, esta parte da obra estava terminada e rapidamente se inseria na imagem
da cidade, como mais evidente sinal de uma modernidade marcada pelo maneirismo
e pelo barroco austero.
Perto, para poente e
ainda sobre o rio, o valido português do invasor, feito marquês de Castelo Rodrigo,
elevou também um palácio de grande qualidade, dito de Corte-Real (do
proprietário do terreno, sogro do edificador), com as suas duas alas de 37
metros perpendiculares ao Tejo, cobertas de terraços, e os seus 185 quartos e
dezoito salões reais. Era certamente um dos mais magníficos» palácios de Lisboa,
a que respondia a enorme massa do palácio Bragança, sobrepujando-o, ao alto
do monte de S. Francisco. Outros palácios, em grande número, foram
então construídos em variados sítios, muitas vezes fora de portas, durante ou
depois da ocupação espanhola, como o dos futuros Abrantes, que fora o Paço
de Santos, o dos Távoras no Campo Pequeno, já longe da cidade, tal
como o dos Fronteiras, em S. Domingos de Benfica, o dos Arcos em
Alfama, os dos Ericeiras, dos Redondos, dos Castelos-Melhor e dos
Almadas, a Valverde, o dos Marialvas a Santa Catarina, o dos Soures no Bairro
Alto, o dos Alegretes na Mouraria, o casarão dos Tancos na Costa do Castelo, o
dos Óbidos e o dos Alvores às Janelas Verdes, e até um paço real em Alcântara,
sem grande relevo, e um Paço da rainha-viúva de Inglaterra, filha de João IV, na
Bemposta, da melhor arquitectura da época. Outra série diz respeito a conventos,
uma vintena (21, entre enumerações de 1554 e de 1620, mais 44 até 1745
quando somarão 87 na cidade e seu termo, e mais em Lisboa do que em todo o
reino, afirmava-se em 1651), incluindo as grandes casas de
S. Bento da Saúde e dos jesuítas de Santo Antão, e ainda os Paulistas, as
Trinas e o convento do Rato, este num largo que, longe da cidade murada,
era já uma importante placa distribuidora
para os arrabaldes, de que dependerá o urbanismo futuro desta
parte ocidental da cidade. Trata-se de construções ou de reconstruções ampliadas,
dentro do esquema de enriquecimento das Ordens, mas toda esta quantidade de
construção não correspondeu a uma qualidade real que nos grandes casarões
monásticos ou seculares se satisfazia com pouco, e geralmente só com o portal
nobre. Duas igrejas marcam, porém, o princípio e fim da arquitectura
Seiscentista de Lisboa: S. Vicente de Fora, cerca de 1580, e Santa Engrácia, cem anos
depois». In José Augusto França, Lisboa. Urbanismo e Arquitectura, Director da
Publicação Álvaro Salema, Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, série
Artes Visuais, Instituto Camões, 1980.
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