«(…) É tempo, talvez, de
nos questionarmos sobre a real dimensão e projecção de todos estes grupos
saídos dessa vaga e abstracta mocidade
das escolas para quem um dia Guerra Junqueiro apelou. É tempo de tentarmos averiguar
até que ponto o movimento estudantil, durante o tempo que medeia entre o apogeu
e a queda de uma certa ideia de realizar a República, não sofreu as
consequências do forte partidarismo da juventude radicalizada em integralismos
mais ou menos ortodoxos, em conservadorismos neo-sidonistas ou cruzadistas, em
republicanismos de feição jacobina ou socializante e, na transição da década de
20 para a década de 30, no marxismo-leninismo do reorganizado Partido Comunista
Português. A resposta à nossa primeira interrogação não é fácil, se nos
quisermos estribar em dados estatísticos, dada a escassez de elementos desta
natureza de que dispomos. Desconhecemos as listas de adesões e só muito
esporadicamente as detectamos com um ou outro número veiculado pela imprensa afecta
às organizações. Um dos principais objectivos, desde sempre, dos centros e
ligas académicos consistiu na promoção de conferências, por vezes na realização
de comícios; também aqui nos surgem hesitações, quando procuramos medir o
alcance da palavra dos oradores através duma impossível contabilização dos
participantes. E já nem sequer falamos da ignorância que temos da tiragem dos
poucos jornais republicanos académicos que conseguem sobreviver ao heroísmo do
primeiro exemplar...
Certo é que a capacidade
de expansão de uma ideia se não pode aquilatar unicamente pelo número inicial
dos seus apóstolos e seguidores, mas antes pela sua maior ou menor adequação às
necessidades dos grupos sociais a quem se dirige e ainda quando demonstra saber enfrentar os grandes campeões das tendências
opostas, quando resolve com os próprios meios as questões vitais que eles
puseram, ou demonstra peremptoriamente que tais questões são falsos problemas.
Parece-nos que de 1880-90 até 1910, com todos os fluxos e refluxos
inerentes a qualquer processo histórico, a difusão do corpo doutrinário e
ideológico republicano contou com a participação de um substancial contingente
de jovens estudantes, sobretudo dos cursos superiores. A sua inclusão na
estratégia dos dirigentes do Partido Republicano Português decorre não
só de uma mítica e mística imagem da mocidade
das escolas, mas talvez essencialmente da verificação da existência de uma dinâmica
sui generis no meio
académico, consequência, em parte, dos condicionalismos específicos a esse
meio. Após 1910, a correlação de
forças no meio académico sofre uma considerável alteração. Os testemunhos que
nos chegaram dão conta de um inquietante acréscimo de desinteresse e apatia
pela res publica; se
esses testemunhos provêm do sector republicano, predomina o espanto ocasionado
pela eficácia revelada pelos monárquicos integralistas em captar para a sua
mundividência grande parte da juventude. Quando, em 1918 e nos primeiros meses de 1919,
quando até em 1926 e, com particular
incidência, nos anos imediatamente posteriores a esta data, se glorifica de
novo o espírito generoso e idealista da mocidade
das escolas republicana, julgamos assistir a um acto de exorcismo, que só
provisória e superficialmente actua sobre as sombras que se pretende
esconjurar. No entreacto tentam-se explicações, apontam-se soluções. De um modo
geral, existe a convicção de que a principal causa do desinteresse da juventude
pelos princípios democráticos advém do carácter conservador ou mesmo
reaccionário do corpo docente das várias escolas secundárias e superiores do
País. No sentido de eliminar o efeito, tomam-se medidas contra a suposta causa,
decretando-se a fiscalização do grau de republicanismo dos professores
contratados pelo Estado, facto que sempre suscitou o desagrado da instituição
universitária, ciosa das suas prerrogativas autonómicas, concedidas
precisamente pela República.
Há quem, no entanto, não
concorde com a pertinência dos argumentos que atribuem à educação a fonte do
insucesso republicano, recordando que nos tempos da Monarquia se formou uma
juventude revolucionária dentro dum sistema caduco de ensino. Há mesmo quem
considere que a dilucidação do problema passa pelo uso de outros pressupostos
teóricos:
- [...] a geração que anda agora nas escolas não representa o Povo português. Com poucas excepções, apenas confirmantes da regra, os rapazes da academia pertencem às classes dominadoras da sociedade portuguesa. Os pobres, os filhos do Povo, não passam da instrução primária, bloqueados pelo preço das propinas e dos livros. Já era assim no meu tempo. Mas, no meu tempo, a classe a que eu e os meus condiscípulos pertencíamos estava solidamente instalada no Poder. Podíamos nós, os moços, permitir-nos idealismos avançados, que a vida e o interesse pessoal mais tarde quase sempre esbatiam, sem que mal de maior viesse ao mundo. [...] Mas agora... Agora que a tormenta anda no céu, o plácido lago antigo tem onda, cria torvelinhos e sacode por si próprio o batel dos nossos privilégios. Como ao outro que diz: a coisa não está para brincadeiras... E os rapazes sentem que, se não defenderem com cuidado a lancha, arriscam-se a ter de nadar. [...] É este o aspecto espiritual da nossa mocidade. Uma agonia de classe que ingenuamente se amarra a princípios de reacção. In Amâncio de Alpoim.
In Ana M. Caiado Boavida, Tópicos sobre a Prática Política dos
Estudantes Republicanos (1890-1931), Limites e Condicionantes do Movimento
Estudantil, Análise Social, vol.
XIX, 1983.
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