«(…) Numa conferência de
1926 pronunciada em Coimbra proclamou com ênfase: A cultura autêntica, a cultura crítica
não impera ainda em Portugal. Somos o Reino
Cadaveroso; somos o Reino da
Estupidez. E repetiu: Portugal,
por enquanto, é ainda o Reino da Estupidez.
Enfim, talvez por essas e outras
manifestações da sua veia polémico-satírica, Sérgio continua hoje, dez anos depois de enterrado, cinco anos após
a extinção da Censura, a ser o grande ausente das nossas escolas. O seu nome
serve por vezes para rótulos, para etiquetas, mas a sagacidade crítica do seu
espírito continua alheia, estranha ao pensamento oficial neste Portugal que se pretende
democrático. António Sérgio, o grande Mestre (que devia ser), mantém-se
afinal o grande Exilado (que é ainda)
da inteligência portuguesa. E, no entanto, é pelo ensino de Sérgio que melhor podemos compreender o
grande significado histórico da nossa Revolução. Ele que já não a viveu, mas
que a havia perscrutado nas linhas profundas, estruturais, que condicionaram a
evolução histórica da sociedade portuguesa. Em 1923 já ele reconhecia que o maior acto revolucionário da nossa
História tinha sido… a independência do Brasil, afinal, o início da nossa descolonização.
Porque, dizia ele, ou voltava o Brasil a ser
colónia, ou havia de se modificar a estrutura da nação. É esta modificação
fatal da estrutura da nação que até hoje, cinco anos volvidos sobre a descolonização
africana, ainda não compreenderam as élites pensantes e políticas da
nação portuguesa.
Ensinou-nos Sérgio o que os estudantes das nossas escolas
ainda hoje não estudam, porque a maioria dos seus professores também não
aprenderam: que não sendo mais Portugal um país colonialista, isto é, suprimidos
os alicerces do sistema parasitário, a metrópole careceu de um abalo. Ou voltava o Brasil a ser colónia, ou havia
de se modificar a estrutura da nação. Que
teremos nós feito de Sérgio? Será
que também nós, depois do 25 de Abril, o enterramos nas tumbas do silêncio em
que Salazar sempre o quis encerrado? Será que nos esquecemos dos nossos Mestres, para só termos olhos e
ouvidos atentos à barafunda dos confusionistas, dos mortos que ainda não
enterraram os seus mortos? E, em 1924,
completava a sua perscrutação histórica fazendo sobrelevar a corrente
criticista que, desde o século XVII (Antologia dos Economistas
Portugueses), reclamava a Reforma Agrária. Uma impossível Reforma
Agrária até ao tempo de Sérgio,
que sempre esbarrou no obstáculo da exploração colonial, a exploração que fazia
gorar todo o esforço reformador no nosso país durante séculos adiado. Que diria ele agora da revolução
inevitável que a descolonização no nosso tempo impõe às estruturas materiais e
mentais da nação portuguesa, do Portugal libertado? Para Sérgio, se nos dão licença, alguns
momentos de reflexão…
Que nação somos, que poderemos
ser, por onde vimos?
Pode dizer-se de António
Sérgio, filho e neto de marinheiros e governadores coloniais, que foi
uma voz da má consciência do colonialismo português. Nascido no Estado da
Índia (Damão, 3-XI-1883), quando
seu pai ocupava aí o lugar de governador do distrito, ele próprio começou por
ser destinado também à carreira tradicional dos vice-almirantes da família. Fez
para isso a instrução secundária no Colégio Militar e foi, depois, estudante na
Escola Politécnica como preparação para a Escola Naval, que lhe ministrou uma boa
formação matemática. Chegou mesmo a estagiar em Macau e Cabo Verde. Mas outras
preocupações avassalavam já o seu espírito, fortemente impressionado pelas
leituras, que desde cedo fez, das obras de Antero de Quental. De 1901-1903
data a primeira formulação das Notas sobre os Sonetos e as Tendências
Gerais da Filosofia que, revistas e editadas em 1909, terão constituído material para um concurso à cadeira da
Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1912. Entretanto, também um volume de Rimas,
publicado em 1908, marca a sua
vocação, não propriamente para a poesia, a cujo género não voltará senão
esporadicamente, mas para a reflexão filosófica. E em 1910 há notícia, ainda em meses de Monarquia, de ter participado na
fundação, a 15 de Janeiro, da Sociedade de Estudos Pedagógicos, de que
fizeram também parte Tomás da Fonseca, João de Barros, etc., projecto, portanto, de uma plêiade de jovens pedagogos
empenhados, como a vida e obra de cada um deles acabou por comprovar, na
reformação da mentalidade nacional.
Era o nosso visconde
Sérgio de Sousa, título e nome que aliás nunca usou, segundo-tenente da
Marinha de Guerra quando a proclamação da República (5-X-1910) lhe deu
enfim pretexto para trocar a carreira a que o predestinara a família e escolher
livremente a de intelectual, em que tomou por escopo a cultura do povo português. E, logo em 1911, o seu nome aparece a encabeçar,
como director, uma revista mensal ilustrada: Serões». In Victor Sá, A historiografia
sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura Portuguesa, CV camões,
Biblioteca Breve, Gráfica da Livraria Bertrand, 1979.
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