A Dedução Transcendental de 1781. Dedução A
«(…) Este momento é da máxima relevância no contexto da Filosofia
Transcendental, pois prepara a redução à imanência dos chamados objectos do
sentido externo. Complementado por uma doutrina da sensibilidade convenientemente
retocada por uma ênfase na intuição formal, o argumento do Quarto Paralogismo oferece as condições que levarão mais
tarde à inflexão no sentido do Idealismo Absoluto presente no OP. É
inteiramente diferente o argumento de 1787.
Em vez de opinar que os objectos exteriores são apenas uma espécie das minhas
representações internas, Kant afirma agora que é do oposto
que se trata. Ao afirmar que das minhas percepções desse objecto permanente, e
portanto a nossa consciência, só são possíveis mediante a existência duma coisa
exterior a mim, e não através da mera representação duma coisa fora de mim e, Kant
está afinal a propor uma doutrina do objecto inteiramente oposta àquela que permitiu
a referida redução à imanência. Os objectos, vemo-lo agora, não são redutíveis
à pura representação da Natureza e precisam dum conteúdo que só a Natureza pode
oferecer. Vemos que Kant deslocou o centro de gravidade da discussão em torno do
Idealismo que havia estabelecido no Quarto
Paralogismo. Aí, ainda profundamente envolvido na distinção proposta
por Descartes do binómio subjectividade-objectividade, Kant
forja uma nova concepção de conhecimento que o filósofo francês desconheceu.
Para Kant é o binómio aparência-realidade que sucede à perspectiva
cartesiana. Mas esta radical mudança de horizontes presta-se ainda a uma
interpretação incorrecta. Como Kemp Smith afirmou, foi por equívoco que um
número considerável de comentadores interpretou a Refutação do idealismo como constituindo uma rejeição do Idealismo
baseada na existência das coisas em si.
A verdade é que, continua o comentador inglês, Kant já se tinha dissociado
do subjectivismo cartesiano de cariz idealista, e apresenta na Refutação de 1887 uma posição fenomenista. Kemp Smith tomou uma atitude correcta
ao introduzir uma polarização entre subjectivismo e fenomenalismo no Idealismo
Transcendental kantiano. De facto, no idealismo subjectivo, considerado
justamente pelo comentador inglês como um resíduo pré-crítico no sistema
kantiano, os objectos exteriores distintos das nossas representações
subjectivas são coisas em si, na sua inacessibilidade. Quando Kant se apresenta,
porém, como pensador crítico, ele interpõe entre uma realidade em si e o
sujeito as percepções e os objectos empíricos. Quando neste estudo se menciona
uma fronteira entre o Kant ortodoxo e o Kant heterodoxo, a
distinção traçada acima está sempre presente. O Kant ortodoxo é aquele
que defende que os objectos externos não são nada para além das minhas
representações, mas esta maneira de ver é consentânea com a existência de algo
cujo conhecimento está à partida escotomizado, ao passo que na perspectiva
heterodoxa se requer, como acima se sublinhou, a comparência de objectos
empíricos indissociáveis da percepção. A heterodoxia kantiana requer pois uma doutrina
realista da existência independente da natureza material.
Esta segunda perspectiva não deve ser menosprezada numa investigação em
torno da Filosofia Transcendental. Foi esta última forma de interrogação
que constituiu um dos dois registos em que Kant se exprimiu. Se a Revolução
Copernicana é uma peça indispensável da Filosofia Crítica, o segundo
vector que enunciámos vai desencadear, na charneira dos séculos XVIII e XX, uma
nova revolução do pensamento de Kant, que detectámos na última década do século
XVIII. De momento, porém, retomaremos apenas o fio do nosso discurso e
deixaremos a elucidação desta segunda revolução para mais adiante. Trata-se de
exibir a dupla trilha do pensamento do filósofo que se traduz na simultânea prossecução
de dois objectivos aparentemente incompatíveis. As tendências ortodoxa e
heterodoxa são representadas no que se segue pela impossível coexistência das
teses que constituem a Revolução Copernicana com as que a contrariam
frontalmente. Este confronto corre, no contexto da Dedução Transcendental. E é
da natureza específica da dedução, na medida em que desde a instauração do
conceito de dedução se reúnem já as condições inevitáveis para a aparição da
ortodoxia e da heterodoxia. A Dedução Transcendental das Categorias é
pois o acme da Crítica da Razão Pura. Kant quer demonstrar que para todo
o conhecimento objectivo, tal como ele surge na experiência, a intervenção das
categorias é absolutamente necessária. O seu objectivo é pois explicar como é
que os conceitos a priori se relacionam
com os objectos. Precisando o modo como se apresenta a demonstração, e portanto
a própria formulação da prova, Kant usou o termo dedução». In António Fragoso Fernandes, Da Aporia à
Cisão, Interpretação do Opus Postumum Kantiano, Estudos Gerais, Série
Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2006, ISBN
972-27-1471-6.
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