Sá
de Miranda. Inovação e Polemismo. Inovações temáticas e inovações formais
«(…)
De qualquer modo, o decassílabo
representou, em última análise, o eixo ao redor do qual giraram as
suas restantes inovações. Antes de mais, impunha-se, de facto, um novo metro,
amplo, dúctil, gracioso e austero, capaz de quebrar a tirânica monotonia das
redondilhas (incluindo o próprio verso hendecassilábico de arte maior, que mais não era que articulação de duas redondilhas
menores) e de exprimir, em suma, o que nessa mesma regla estrecha de modo algum já podia caber. E o decassílabo era
precisamente o que convinha, porquanto se afirmara, desde logo, nos padrões
italianos a que Miranda foi buscá-lo, aquele divino instrumento, perfeccionadíssimo, de maravilhosas voces, registros
y potencias, que unía en si gravedad, matiz, ftexibilidad, fuerza y siempre,
siempre elegancia. Pertence a Dámaso Alonso esta luminosa caracterização.
E não nos admiremos que ele assim defina o decassílabo, não através de frias e
técnicas designações, mas em cálidos termos de conteúdo: não há forma que não seja fundo, ou que irrestivelmente o não sugira. Jamais um metro se reduz a simples
diagrama; e o decassílabo, como pura medida,
não passa de abstracção: a realidade decassílabo
só se torna visível no caso concreto de cada
decassílabo. Não foi pois uma medida, um diagrama, uma abstracção, o que Sá
de Miranda introduziu na poesia portuguesa. Ele tratou, pelo contrário, de
traduzir, concretamente, em decassílabos concretos, uma experiência concreta (pessoal
e cultural), a que já não quadrava o espartilho, gracioso que fosse, da medida velha.
Manual
do perfeito inovador
Para
bem entendermos o significado das inovações mirandinas, há que ter presente o
estado de saturação, tão largamente evidenciado no Cancioneiro Geral, de um
tipo de poesia cortesanesca e metricamente uniformizada, a que ele próprio, é
certo, também não deixou de render tributo. Mas não será audacioso presumir que
a mesma publicação do Cancioneiro (1516) tenha inclusivamente
suscitado, no nosso poeta, um primeiro desejo de reacção contra essa monotonia
formal. E o facto de figurar entre o elenco escolhido por Garcia de Resende
não o terá inibido, antes poderá tê-lo estimulado a empreender novos caminhos:
também Verlaine e Mallarmé começam por colaborar no Parnasse Contemporain;
também Fernando Pessoa, embora com textos doutrinários, começa por
colaborar em A Águia.
Com
muita finura e inteligência, Andrée Crabbé Rocha empenhou-se em considerar o Cancioneiro
Geral como ponto de partida para toda a ulterior poesia portuguesa. É
bem provável, todavia, que ele representasse sobretudo um terminus ad quem, e não um terminus a quo, para um poeta como Sá de Miranda; e
razão tinha, porventura, Carolina Michaelis Vasconcelos, ao referir-se-lhe como
a um espírito que pretendia inovar,
e estava fazendo as suas contas com o passado. Note-se, desde já, que esse
ajuste de contas não será radical: Sá de Miranda tinha, com efeito, o
gosto suficientemente esclarecido para se aperceber das extraordinárias
virtualidades da medida velha, para
continuar portanto a utilizá-la e para compreender que o pecado, no Cancioneiro
Geral, era somente o do seu exclusivo emprego. António Ferreira,
mais tarde, pecará pelo excesso oposto: com a ardência de todos os neófitos, empregará
apenas as formas italianas. Na mesma geração, contudo, e de maneira genial, Camões
realizará a síntese. Mas a verdade é que ela se encontra já lucidamente
sugerida no próprio Sá de Miranda, em cuja obra se concentra, ou prefigura,
dialecticamente articulada, toda a evolução da poesia do século XVI». In
David Mourão-Ferreira, Hospital das Letras, Ensaios, Guimarães Editores,
Lisboa, 1966.
Cortesia
de GuimarãesE./JDACT