O
Andróptero
«Qual
seria nossa surpresa se encontrássemos, ao abrir uma obra de filosofia, um
capítulo dedicado não às formas puras, mas às formas ctónicas da Geografia! É
certo que não acharíamos, de golpe, senso algum nessa aproximação, pois que
concordâncias estabelecer entre as descrições objectivas e isentas da Geografia
e o vulcanismo da alma, entre os cenários milenares dos rios e montanhas e o desenvolvimento rápido e trémulo de nossa
vida? Essas explorações parecem chocar-se e contradizer-se como direcções
verticais. Entretanto, tal incongruência
encontrámo-la num dos diálogos do divino Platão. No Fédon, depois de afirmar que esta terra não corresponde à imagem
que dela fazem os que costumam redactar descrições de sua superfície, Platão
nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade de lugares
maravilhosos que desconhecemos por habitarmos entre Farsis e as colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre
vales e escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento
das paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina a nossa terra. Tendo fixado nossa residência
neste solo pedregoso e estéril, aqui vivemos disseminados pelas praias e
costas, como formigas e rãs em redor de
um pântano. Este provincialismo geográfico desastroso e fatal, que se nos adere,
termina por nos cegar, e deixamos então de perceber que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos estão
inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaz no mar o está, pela
acritude dos sais. Em toda parte, as infiltrações arenosas e salobras
sustêm o crescimento de toda forma bela e plena, assim como no mar nada cresce de perfeito e de valioso. Não
conhecendo outra perfeição além da paisagem desta região inferior, imaginamos
viver em opulência entre as folhagens enfermas que nos cercam. Por que então não procurar algures o que
nos falta aqui? Por que, como os flagelados das inclemências, não emigrar para outros céus? E
aqui essa geografia transfigurada de Platão se desdobra em toda a sua riqueza
simbólica. Se vivemos tolhidos em nosso Liliput é porque, para onde quer
que nos voltemos, a terra se cava em fundos abismos ou ergue montanhas pétreas
e intransponíveis, em sinclinais e anticlinais que transformam sua superfície
em tortuoso caminho. A sombra desses descomunais limites se esbate, violenta,
sobre as rugosidades e depressões em que habitamos. A topografia acidentada e
sinuosa destas regiões, este solo atormentado e revolto é que confere aos
nossos dias o carácter angustiante e limitado e todo o ressaibo de penúria e
carência. Há sempre um mais que se anuncia nesse menos, um além que nos envolve
e nos escapa, reverberando no alto dos cimos infinitos. A ilusão é, pois, a
nossa arma contra essas opressões abusivas e constantes; assim é que sumidos nestas cavernas sem darmos por isso,
acreditamos habitar no alto da terra como alguém que, constituindo sua morada
nas profundidades do Oceano, imaginasse habitar acima do mar, e vendo, através
da água, o sol e os outros astros, tomasse o mar pelo céu. Escapamos ao
nosso cativeiro pelo expediente da má-fé e da falsificação, apagando em nossa
consciência todos os sintomas da sujeição e do abatimento do nosso estado e
compondo um vigor de aparências. Sentimo-nos senhores das alturas, quando em
verdade vivemos como formigas e rãs em
redor de um pântano.
No
diálogo citado, uma aula de topografia se transmuta numa meditação sobre as
coordenadas da existência, numa experiência e sondagem da finitude humana. A
quem acusa Platão explicitamente por esse enclausuramento
de nossas possibilidades? Não, como era de se esperar, à asperidade do
nosso habitat mas sim ao nosso peso e
à nossa debilidade que impedem nossa ascensão às alturas. Somos nós que
aderimos à terra por uma propensão ou gravidade próprias, por um geotropismo
que a destaca em toda a sua substantividade. Essas luxuriosas formações geológicas que constituem ao mesmo tempo
o anfiteatro e a cela do nosso existir seriam o reflexo de uma inflexão ou
inércia internas, de uma projecção da nossa impotência. Por não possuirmos
asas, existe uma terra árdua onde devemos vicejar e uma coisa é o contragolpe
da outra. No Fedro, Platão já
nos havia dito que, quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços infinitos
até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa coisa sólida é constituída pelo sistema
de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da materialidade».
In
Vicente Ferreira da Silva, Dialéctica das Consciências, Ensaios, Estudos
Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002,
ISBN 972-27-1166-0.
Cortesia
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