sexta-feira, 25 de julho de 2014

Dialéctica das Consciências. Ensaios. Ferreira Silva. «… sumidos nestas cavernas sem darmos por isso, acreditamos habitar no alto da terra como alguém que, constituindo sua morada nas profundidades do Oceano, imaginasse habitar acima do mar, e vendo, através da água…»

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O Andróptero
«Qual seria nossa surpresa se encontrássemos, ao abrir uma obra de filosofia, um capítulo dedicado não às formas puras, mas às formas ctónicas da Geografia! É certo que não acharíamos, de golpe, senso algum nessa aproximação, pois que concordâncias estabelecer entre as descrições objectivas e isentas da Geografia e o vulcanismo da alma, entre os cenários milenares dos rios e montanhas e o desenvolvimento rápido e trémulo de nossa vida? Essas explorações parecem chocar-se e contradizer-se como direcções verticais. Entretanto, tal incongruência encontrámo-la num dos diálogos do divino Platão. No Fédon, depois de afirmar que esta terra não corresponde à imagem que dela fazem os que costumam redactar descrições de sua superfície, Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade de lugares maravilhosos que desconhecemos por habitarmos entre Farsis e as colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina a nossa terra. Tendo fixado nossa residência neste solo pedregoso e estéril, aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como formigas e rãs em redor de um pântano. Este provincialismo geográfico desastroso e fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos então de perceber que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaz no mar o está, pela acritude dos sais. Em toda parte, as infiltrações arenosas e salobras sustêm o crescimento de toda forma bela e plena, assim como no mar nada cresce de perfeito e de valioso. Não conhecendo outra perfeição além da paisagem desta região inferior, imaginamos viver em opulência entre as folhagens enfermas que nos cercam. Por que então não procurar algures o que nos falta aqui? Por que, como os flagelados das inclemências, não emigrar para outros céus? E aqui essa geografia transfigurada de Platão se desdobra em toda a sua riqueza simbólica. Se vivemos tolhidos em nosso Liliput é porque, para onde quer que nos voltemos, a terra se cava em fundos abismos ou ergue montanhas pétreas e intransponíveis, em sinclinais e anticlinais que transformam sua superfície em tortuoso caminho. A sombra desses descomunais limites se esbate, violenta, sobre as rugosidades e depressões em que habitamos. A topografia acidentada e sinuosa destas regiões, este solo atormentado e revolto é que confere aos nossos dias o carácter angustiante e limitado e todo o ressaibo de penúria e carência. Há sempre um mais que se anuncia nesse menos, um além que nos envolve e nos escapa, reverberando no alto dos cimos infinitos. A ilusão é, pois, a nossa arma contra essas opressões abusivas e constantes; assim é que sumidos nestas cavernas sem darmos por isso, acreditamos habitar no alto da terra como alguém que, constituindo sua morada nas profundidades do Oceano, imaginasse habitar acima do mar, e vendo, através da água, o sol e os outros astros, tomasse o mar pelo céu. Escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da má-fé e da falsificação, apagando em nossa consciência todos os sintomas da sujeição e do abatimento do nosso estado e compondo um vigor de aparências. Sentimo-nos senhores das alturas, quando em verdade vivemos como formigas e rãs em redor de um pântano.
No diálogo citado, uma aula de topografia se transmuta numa meditação sobre as coordenadas da existência, numa experiência e sondagem da finitude humana. A quem acusa Platão explicitamente por esse enclausuramento de nossas possibilidades? Não, como era de se esperar, à asperidade do nosso habitat mas sim ao nosso peso e à nossa debilidade que impedem nossa ascensão às alturas. Somos nós que aderimos à terra por uma propensão ou gravidade próprias, por um geotropismo que a destaca em toda a sua substantividade. Essas luxuriosas formações geológicas que constituem ao mesmo tempo o anfiteatro e a cela do nosso existir seriam o reflexo de uma inflexão ou inércia internas, de uma projecção da nossa impotência. Por não possuirmos asas, existe uma terra árdua onde devemos vicejar e uma coisa é o contragolpe da outra. No Fedro, Platão já nos havia dito que, quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços infinitos até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa coisa sólida é constituída pelo sistema de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da materialidade». In Vicente Ferreira da Silva, Dialéctica das Consciências, Ensaios, Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002, ISBN 972-27-1166-0.

Cortesia da INCM/JDACT