sábado, 26 de julho de 2014

A Bela Poesia. 1957 1971. Obra Poética. Salette Tavares. «Quando baixei os olhos sob o vento vi-me estátua na pira arrebatada. Sobre lençóis de angústia pobre vida estrebuchou desvairada correria para plantar agreste em minha fronte e descer-me as pálpebras sobre o Não»

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Ao mar onde colhi o sal do meu tormento. In Salette

Soneto Pateta I
«Quem coroou a palavra de corneta
quem pôs a tormenta na caneta
quem disse poeta?
Lágrima sineta
faz da jumenta cinzenta
esta violeta.

Quando baixei os olhos sob o vento
vi-me estátua na pira arrebatada,
subida na asa do leão, gloriosa aparecida
desabrochei: pureza, fome, braços paralelos.
Pairando, eu era A sem combate,
cabeça de toiro reclinada
para além do limite
dos contrários.
Águia parada, monstro ferido,
barriga do céu aberta,
azul, branco, negro
onde a noite pariu a luz.
Ó grande sorriso dos deuses,
apocalíptica fronteira das estradas
translargada das sendas e caminhos
onde há
acidentes de invenção.
Ó melódica harmonia, ó sentido
sem Um nem Outro,
sem políticas vigias,
nem desastres
nas vias
de Comunicação.

De que serve opor a norma à norma que a nega,
à regra uma nova regra,
verdades contra Verdades
caminhos contra Caminhos?
A Harmonia é dos Contrários
e a escala
a mesma.
Não expliques. Antes o caos sem normas,
braços, pernas, olhos, mãos,
bocejo de criação,
sem rei, sem lei, sem programa.

Presença do escondido
subterra paradoxo,
memória feita futuro
sem gente para lembrar,
ó antes de se tornar.
Círculo coincidindo círculo
esconde-me junto do vento
crisma-me no meio do mar.
Em ambas margens do rio
arranca as nuvens ao sol
e vem vestir a nudez
da minha presença terra».

Poema de Salette Tavares, in ‘Espelho Cego

In Salette Tavares, Obra Poética, 1957-1971, Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1992.

Cortesia de Aportugueses/JDACT