sábado, 26 de julho de 2014

Está Tudo Ligado. O Poder da Música. Daniel Barenboim. «… há um momento derradeiro de expressividade, que é precisamente a relação entre o fim do som e o início do silêncio que se lhe segue. Neste particular, a música é um espelho da vida, porque ambas começam e acabam no nada»

jdact

Som e Pensamento
«(…) O último som não é o fim da música. Se a primeira nota está relacionada com o silêncio que a precede, então a última tem de estar relacionada com o silêncio que lhe sucede. É por isso que é tão perturbador ouvir um público entusiástico aplaudir antes de se desvanecer o som final, porque há um momento derradeiro de expressividade, que é precisamente a relação entre o fim do som e o início do silêncio que se lhe segue. Neste particular, a música é um espelho da vida, porque ambas começam e acabam no nada. Acresce que, quando se toca música, é possível atingir um estado ímpar de paz, em parte devido ao facto de se poder controlar, através do som, a relação entre a vida e a morte, poder que não é, evidentemente, conferido aos seres humanos na vida. Uma vez que cada nota produzida por um ser humano tem uma qualidade humana, o fim de cada uma transmite uma sensação de morte, e através dessa experiência é possível a essas notas, nas suas breves vidas, transcenderem todas as emoções; em certo sentido, entramos em contacto directo com a intemporalidade. Quando acabo de tocar um dos livros de O Cravo Bem Temperado numa determinada noite, tenho a sensação de que ele é de facto muito mais longo do que a minha vida real, de que fiz uma viagem pela história, uma viagem que começa e acaba no silêncio.
Um dos modos de preparar o silêncio é criando a precedê-lo uma enorme quantidade de tensão, para que o silêncio só aconteça depois de ter sido atingido o máximo absoluto de intensidade. Outro modo de nos aproximarmos do silêncio passa por uma diminuição gradual do som, reduzindo de tal maneira o volume que o único passo seguinte possível seja o silêncio. Por outras palavras, o silêncio pode ser mais alto do que o nível máximo e mais baixo do que o nível mínimo. É claro que o silêncio total existe, mesmo dentro de uma composição. É a morte temporária, seguida da capacidade de ressuscitar, de reiniciar a vida. Deste modo, a música é mais do que um espelho da vida; é enriquecida pela dimensão metafísica do som, que lhe dá a possibilidade de transcender as limitações físicas do ser humano. No mundo do som, nem a morte é necessariamente definitiva.
É óbvio que, se um som tem um princípio e uma duração, também tem um fim, quer morra ou dê lugar à nota seguinte. As notas que se sucedem operam claramente no quadro da inevitável passagem do tempo. A expressividade da música nasce da ligação entre as notas, aquilo que em italiano se designa por legato, que não significa mais do que ligado. É isso que determina a impossibilidade de deixar que as notas desenvolvam os seus egos pessoais, tornando-se de tal forma dominantes que ofuscam a anterior. Cada nota tem de estar ciente de si mesma mas também das suas próprias fronteiras; as mesmas regras que se aplicam aos indivíduos numa sociedade aplicam-se às notas numa peça de música. Quando se tocam cinco notas em legato, cada uma delas luta contra o poder do silêncio que lhe quer roubar a vida, e consequentemente está relacionada com as notas que a precedem e se lhe seguem. Nenhuma nota pode fazer-se valer isoladamente, pretendendo ser mais forte do que as que a precedem; caso contrário, punha em causa a natureza da frase a que pertence. Um músico tem de possuir a capacidade de agrupar notas. Este facto muito simples ensinou-me a relação entre um indivíduo e um grupo. É necessário que o ser humano contribua para a sociedade de um modo muito individualizado; é assim que o todo se torna muito maior do que a soma das suas partes. O individual e o colectivo não têm necessariamente de se excluir mutuamente; pelo contrário, só juntos são capazes de potenciar a existência humana». In Daniel Barenboim, Everything is Connected, ThePower of Music, 2007, Está Tudo Ligado. O Poder da Música, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-53-0434-1.


Cortesia de Bizâncio/JDACT