Som e Pensamento
«(…) O último som não é o fim da música. Se a primeira nota está relacionada
com o silêncio que a precede, então a última tem de estar relacionada com o
silêncio que lhe sucede. É por isso que é tão perturbador ouvir um público entusiástico
aplaudir antes de se desvanecer o som final, porque há um momento derradeiro de
expressividade, que é precisamente a relação entre o fim do som e o início do
silêncio que se lhe segue. Neste particular, a música é um espelho da vida, porque
ambas começam e acabam no nada. Acresce que, quando se toca música, é possível atingir
um estado ímpar de paz, em parte devido ao facto de se poder controlar, através
do som, a relação entre a vida e a morte, poder que não é, evidentemente,
conferido aos seres humanos na vida. Uma vez que cada nota produzida por um ser
humano tem uma qualidade humana, o fim de cada uma transmite uma sensação de
morte, e através dessa experiência é possível a essas notas, nas suas breves
vidas, transcenderem todas as emoções; em certo sentido, entramos em contacto
directo com a intemporalidade. Quando acabo de tocar um dos livros de O Cravo Bem Temperado numa
determinada noite, tenho a sensação de que ele
é de facto muito mais longo do que a minha vida real, de que fiz uma viagem
pela história, uma viagem que começa e acaba no silêncio.
Um dos modos de preparar o silêncio é criando a precedê-lo uma enorme
quantidade de tensão, para que o silêncio só aconteça depois de ter sido atingido
o máximo absoluto de intensidade. Outro modo de nos aproximarmos do silêncio
passa por uma diminuição gradual do som, reduzindo de tal maneira o volume que
o único passo seguinte possível seja o silêncio. Por outras palavras, o
silêncio pode ser mais alto do que o nível máximo e mais baixo do que o nível
mínimo. É claro que o silêncio total existe, mesmo dentro de uma
composição. É a morte temporária, seguida da capacidade de ressuscitar, de reiniciar
a vida. Deste modo, a música é mais do
que um espelho da vida; é enriquecida pela dimensão metafísica do som,
que lhe dá a possibilidade de transcender as limitações físicas do ser humano.
No mundo do som, nem a morte é necessariamente definitiva.
É óbvio que, se um som tem um princípio e uma duração, também tem um
fim, quer morra ou dê lugar à nota seguinte. As notas que se sucedem operam
claramente no quadro da inevitável passagem do tempo. A expressividade
da música nasce da ligação entre as notas, aquilo que em italiano se designa
por legato,
que não significa mais do que ligado. É isso que determina a impossibilidade de
deixar que as notas desenvolvam os seus egos pessoais, tornando-se de tal forma
dominantes que ofuscam a anterior. Cada nota tem de estar ciente de si mesma
mas também das suas próprias fronteiras; as mesmas regras que se aplicam aos
indivíduos numa sociedade aplicam-se às notas numa peça de música. Quando se tocam
cinco notas em legato, cada uma delas luta contra o poder do silêncio que lhe
quer roubar a vida, e consequentemente está relacionada com as notas que a
precedem e se lhe seguem. Nenhuma nota pode fazer-se valer isoladamente,
pretendendo ser mais forte do que as que a precedem; caso contrário, punha em
causa a natureza da frase a que pertence. Um músico tem de possuir a capacidade
de agrupar notas. Este facto muito simples ensinou-me a relação entre um indivíduo
e um grupo. É necessário que o ser humano contribua para a sociedade de um modo
muito individualizado; é assim que o todo se torna muito maior do que a soma
das suas partes. O individual e o colectivo não têm necessariamente de se
excluir mutuamente; pelo contrário, só juntos são capazes de potenciar a
existência humana». In Daniel Barenboim,
Everything is Connected, ThePower of Music, 2007, Está Tudo Ligado. O
Poder da Música, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-53-0434-1.
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