«Neste
ensaio mal esboçado, pobre de húmus erudito, daquele lastro espesso que os
assírios sábios da nossa Terra tem por hábito acumular nos rodapés das suas
sapientes memórias e que na opinião duns tantos se considera cultura, se quis
de relance abordar alguns dos problemas que para o homem moderno a Renascença
representa na trajectória histórica do Ocidente. Uma afirmação capital ressalta
do texto: a de que, consciente ou inconscientemente, reagindo contra as forças
particularistas das hierarquias militares e nobiliárquicas inspiradas pela
feudalidade e o espírito universal e internacionalista da igreja, a classe burguesa
forjou a consciência nacional e concebeu a nação como expoente territorial e político
dos interesses do Povo, fora das castas e das dinastias. A pátria é, pois, um
produto da inteligência burguesa.
A
arqueologia pré-histórica, afirma Ricardo Severo, o português das duas bandas
do Atlântico, com o seu método naturalista de análise, desfez a miragem oriental; que colocava nesse ideal
paraíso onde raiam as auroras, a fonte de todos os povos e civilizações. Afirmou-se
com nitidez a existência de uma civilização
ocidental, que tem as suas artes e indústrias, que tem uma escrita composta
de sinais alfabétiformes, que tem, em suma, vigor e cunho originais, (in
Origens).
Para
além dos Romanos, senhores do mundo, além ainda do mais puro arcaísmo grego,
resumido na cultura micénica, a Península, como diz o arqueólogo invocado, foi
o entreposto natural das duas civilizações, a chave de todos os roteiros marítimos
que seguiram os povos vindos do oriente asiático ou do norte africano, ao mesmo
tempo que o términus das longas
estradas terrestres do centro, do norte e do oriente europeu. Aqui se
estabelece o polo ocidental. Nesses factos remotos há um sopro de predestinação
e as barcas acompanham já o jeito da onda ao seguirem de angra em angra, ao
singrarem até às radas, lançando o fundamento de novos povoados nas
concavidades do litoral.
Não
se pode hoje ignorar que lado a lado do viver agrário e patriarcal das tribus e povos que pelas encostas e
cumeadas, nos castros e cividades que fundaram, foram os precursores remotos da
gente portuguesa, uma importante vida marítima na safra da pesca e no serviço
da navegação se assinala já nas povoações ribeirinhas do mar, abrindo às
perspectivas do tráfico externo os compartimentos do interior. E agora,
contemplando a paisagem humana que pelos séculos fora vem até nós, vemos o
velho Portugal ganhar vida própria, depois que as ambições medievais
encontraram seguro penhor de independência na própria grei, em certa pureza genealógica
que lhe dava unidade e que a onda sarracena não conseguiu anular e a terra, nos
seus afagos e na sua mediania, mantinha vivaz e fecunda, dando à sociedade
rudimentar dos começos do período portucalense uma feição constitucionalmente
democrática, como diz Alberto Sampaio, na qual os nobres e cavaleiros vivem em
comunidade com os humildes lavradores.
Os
bastiões da nacionalidade estão aí, na irmandade do sangue e na pobreza forte, que
hoje ainda, são, porventura, a fonte mais pura da solidariedade entre a gente
lusitana. O mais que os críticos da história erigem em causa, em razão condutora,
seja a atracção do mar, a política centrífuga, o sentido cosmopolita (factor
económico-geográfico), seja a superior política dos grandes órgãos da cristandade
militante, de além Pirinéus, a ordem de Cluny, seja a vontade forte dos barões,
que à realeza investida de divino poder, opõe a aristocracia fechada e igualitária,
de tradições germânicas, ciosa dos seus foros e de espada livre (factores
políticos, ecuménico um, particularista outro), são forças que, sem dúvida
desencadearam e hoje explicam a acção, mas que ao cabo fracassariam se um
sentimento bem vivo de comunhão familiar não se elevassem da grei. E é ela,
heróica de virtudes e vigorosa de robusta personalidade, que enche a cena da
História quando os olhos se volvem ao passado e contemplam a sombra gigantesca
que Portugal projectou no mundo». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos
Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.
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de T.Sequeira/JDACT