«(…) Riam-se de ti, quando falavas da verdade. Repetiam-te que a verdade
não existia, porque essa era a verdade do pedaço de tempo que nos era dado
viver. Mas tu não te instalavas no teu tempo. E preocupavas-te continuamente em
não te instalares num outro qualquer tempo que te tornasse anacrónica. - Quero
lá saber que me achem caduca. Mas rala-me pensar que posso não ter mais do que
ideias de reacção. Não nos podemos deixar levar para o campo do inimigo, meu
querido. O campo do inimigo. Sabias desenhá-lo com a nitidez de um relvado de
futebol. Gostavas de futebol porque era parecido com a verdade. Mesmo com
árbitros comprados. Ou notas correndo em rios gordurosos debaixo das mesas de fiscais,
empresários, advogados. Mesmo quando se tornou um negócio. Os maus e os bons, os
puros e os impuros; sim, o correr das notas tornava as distinções mais árduas.
Mas o sol sobre o relvado decidia tudo, as pernas dos homens correndo atrás da
bola da verdade. - Vê-se tão bem quem joga com tudo o que é e quem joga só com
o corpo, dizias tu. Porque é que a
vida não é transparente como um jogo de futebol?
De quem é esta morte encenada
em caixão? De onde vem esta
febre fria que me sela a boca? Luto para fugir desta caixa onde me expõem
e me lamentam. Se ao menos soubessem rezar. Pai Nosso, eu não quero já o céu.
Aos vivos, incomoda-os o cheiro dos mortos. Por isso o sufocam em flores,
incenso, velas, tudo o que possa manter esse cheiro longe do corpo concreto,
ainda carne, ainda quente. No lugar do morto, é o medo que enjoa e entontece. O
medo que os vivos têm de mim, agora, do futuro que lhes anuncio, vestida para
enterrar. Esse medo cria ondas de calor, ondas enevoadas, que a luz das velas,
a baba dos sussurros amplia. Meto-te
medo, também a ti? Aqui imóvel, de olhos fechados, olhando-te ainda,
para não me olhar a mim, para me afastar do cheiro a medo que é talvez o cheiro
derradeiro. Concentro-me em ti, no cheiro da praia, algas e rochas, no cheiro
do mar onde tantas vezes mergulhámos juntos, nos cheiros da vida que me salvem
desta névoa maciça, da piedade irremediável de mim. Pai Nosso, deixa-me olhar para
ele. Deixa que os meus olhos mortos subam na luz das velas, devagar, para olhar
para ele.
Contemplo-te, finalmente. Nunca pensei ver-te de meias desemparelhadas,
uma cinzenta, a outra preta. Quando cruzaste as pernas e ergueste as costas com
um suspiro, deitando a cabeça para trás, apercebi-me desse pormenor e só então
me comovi. Porque aquela tua pose sofredora, uma hora sentado de cabeça baixa,
podia não querer dizer nada. Ou melhor, podia querer dizer tantas coisas que se
tornava uma pose branca, de uma elegância sombria distante de mim. Passei a
vida inteira a querer interpretar-te, - oh! Delicioso desperdício!, e nem
sequer era por amor. Quero dizer, não era por causa daquela coisa que põe as
pessoas numa exaltação de posse e de sexo. Através de ti eu existia antes de
ter nascido, no vocabulário áspero e secreto de uma guerra que já não me
pertenceu, moita carrasco, gatilhos olvidados,
o tanas. Nem naquela noite em que despejámos sozinhos a tua preciosa
garrafa de whisky velho irlandês e ficámos a ver a primeira demão do sol sobre
os telhados de Lisboa nos ocorreu, sequer por um segundo, experimentar isso a que
chamam a vertigem do corpo. De certa maneira, sabíamos de cor o corpo um do
outro; trocávamos inibições e desaires como os miúdos trocam cromos. Mais do
que alegria, era uma espécie de orgulho que nos estonteava nessa troca de intimidades
funestas. Sem dormir contigo, aprendi de ti as vitórias e misérias de um homem,
o rigor turbulento do prazer, o pavor de falhar, a relatividade das entregas
como regra de entrega absoluta». In Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, Publicações
Dom Quixote, Lisboa, 2002, ISBN 972-20-2253-9.
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