terça-feira, 29 de julho de 2014

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Mas o deserto, autêntico ou imaginário, desempenhou um papel importante nas grandes religiões euro-asiáticas: judaísmo, islamismo, cristianismo. Representou os valores opostos aos da cidade»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Fronteiras do maravilhoso, enfim, que ameaçam o próprio maravilhoso, que assim corre o risco de dissolver-se: são as diferentes formas de recuperação. Reduzi-las-ia a três capítulos: a recuperação cristã em geral, a recuperação científica, a recuperação histórica. A recuperação cristã canalizou o maravilhoso, por um lado, para o milagre, por outro, para uma recuperação simbólica e parenética. Entre muitos, escolhemos um exemplo belíssimo. Trata-se da evolução das versões latinas do Physiologus. Inicialmente, temos versões que nos contam maravilhas sem que delas nos sejam apontados significados e explicações simbólicas. A seguir, e cada vez mais, as explicações simbólicas e parenéticas devoram, por assim dizer, a substância do Physiologus, enfraquecendo-o. Uma segunda forma de recuperação, muito interessante, é a recuperação científica de um certo número de intelectuais, de estudiosos, que possuíam verdadeiramente aquilo a que hoje chamaríamos o espírito científico. Estes tendem a fazer dos mirabilia fenómenos marginais, casos-limite, excepcionais mas não fora da ordem da natureza e verdadeiros, embora não tenham o aval da Bíblia. O melhor exemplo desta mentalidade é-nos proporcionado, parece-me, pelo próprio Gervásio Tilbury que, no prefácio a Otia Imperialia, desenvolveu longamente, em textos apaixonantes para a história do espírito científico, esta tendência para ligar os mirabilia como mundo natural e, por conseguinte, científico. Mirabiliavero dicimus quae nostrae cognitioni non subjacente etiam cum sint naturalia.
A pari passu com esta recuperação científica vai também a recuperação histórica. Trata-se do desejo de ligar os mirabilia a acontecimentos e datas. E, com este estratagema, os mirabilia, que só se tornam manifestos numa paragem do tempo e da história, são também levados ao esvaziamento. Tenho a impressão de que em tudo isto se manifestam tendências que, embora comuns a religiões como, por exemplo, o islamismo e o cristianismo, parecem mais próprias do cristianismo: tendência para o simbolismo e para a fixação ética, tendência para a racionalização científica e histórica. Poder-se-ão identificar aqui e ali correntes de fundo, inimigas ocultas do maravilhoso? Poderia ser essa uma linha de ulterior pesquisa.

O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
Pretendeu-se por vezes pôr em relação ambiente desértico e fenómeno religioso. Perguntou-se se haverá uma religião no deserto, se o deserto predisporá para um determinado tipo de experiência religiosa de preferência a outro. De um modo particular, pensou-se que o deserto favorece o misticismo. Há cerca de cem anos, em 1887, na sua Histoire du peuple d'Israël, Renan afirmava, não sem audácia: O deserto é monoteísta. Estas teses, que, em última análise, se fundam num determinismo geográfico um tanto simplista, não podem hoje ser aceites como boas. Mas o deserto, autêntico ou imaginário, desempenhou um papel importante nas grandes religiões euro-asiáticas: judaísmo, islamismo, cristianismo. Habitualmente, representou os valores opostos aos da cidade e, por isso mesmo, deve interessar a história da sociedade e da cultura. No cristianismo medieval, a ideologia do deserto apresentou-se de uma forma inédita: o deserto foi a floresta». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT