Aleph
«(…) Contudo, ao escrever e pensar estas limitações ao acesso do divino
pela mente humana, não estarei, afinal, a imaginar Deus, a postulá-lo com uma hipótese ou uma premissa garantida?
Creio que não. Limito-me, sim, a conceber que Deus é uma entidade desde logo
inconcebível, porque, se existisse, ultrapassaria tudo quanto a nossa pobre
mente seria capaz de pensar dele: inconcebivelmente vasto, complexo,
misterioso, transcendente, inacessível, inatingível, incompreensível, etc. Só
recorrendo ao quia absurdum seria o meu espírito capaz de o aceitar como
graniticamente existente e susceptível de ser conhecido. Não intento sequer
aproximar-me desse deserto imenso e interminável que seria Deus ou desse mar
profundo e infinito sem margens finais em lado nenhum do espaço universal que
seria, assim, a sua imensidão inexaurível, a sua prodigiosa e derrotante
grandeza sem quaisquer termos ou fronteiras ou limites.
Por isso, à maneira da teologia
negativa da Idade Média, desde o corpus
areopagiticum do chamado pseudo-Dionísio (século VI d.C.), que
imprimiu um selo platónico a toda a escolástica e mística da Idade Média,
fascinando todo o seu pensamento, o pseudo-Dionísio definia Deus como
extra-ser, aquilo que excede todo o
pensamento e que habita para além das alturas da morada celestial (...) Aquele que
está acima de toda a essência e toda a inteligência (De mysthica Theologia),
só posso conceber a minha própria incapacidade de o conceptualizar e abarcar, a
minha nativa e insuperável inabilidade para imaginar o que Deus possa ser ou
como possa ser, definindo-o negativamente. Nenhum voo vertical me levantaria,
assim, do chão miserável onde rasteja o meu espírito, como a serpente bíblica
condenada por Deus por ter auxiliado Adão e Eva a julgarem pelos próprios
intelectos. Deus fica sempre para além de tudo quanto eu possa imaginar ou
intentar racionalmente exprimir, a menos que desde logo o decretasse como
cognoscível, ser a amar, ser amado, e nessa medida susceptível de ser atingido
pelo meu caminho persistente para ele ou de algum modo erguido até ele pelo
próprio amor que ele me tivesse, à maneira de todos os utopistas individuais
que se chamam místicos, viajantes temerários que buscam tão ardentemente uma incógnita
terra buscada e sonhada, a qual, mesmo que não existisse, Deus a criaria para
que a achassem algum dia.
Crer em Deus supõe, ao fim e ao cabo, a graça de crer nele, a vontade
que é só dele de se fazer amado por mim, a graça que ele me desse para que eu o
amasse, o pudesse ou quisesse amar. Só com a sua ajuda, portanto , a minha alma
poderia achá-lo ou concebe-lo, o que é, evidentemente, absurdo para quem não
parta de um pressuposto de crença prévia nele, como é o nosso caso. Como é que
eu posso imaginar esse espantoso ser inimaginável, a menos que previamente me
sinta dotado da capacidade, ou do mérito, de por ele ser encaminhado, ou
erguido, para a sua esfera transcendente, ou capaz de anular a infinita
distância que me separa do seu trono pela simples presença de uma vontade que,
no fundo, me anula e supera, de molde a encurtar essa infinidade espacial que
me separa de Deus e, deste modo, tornar
possível o meu caminho para ele? Simone Weil, ardente enamorada
de Cristo, supunha que o ser humano é uma flor que Deus se abaixa a colher porque
só ele é capaz do infinito amor que tal gesto de humildade implica. A vinda do
seu filho à terra e o seu sacrifício eram uma prova suprema deste mesmo amor
desta infinita humildade dadivosa e sacrifical do amor de Deus pelos homens,
deste sacrifício por nós. Mas como posso aceitar esta postura, se não creio em Deus nem no seu filho
feito homem?
Que fazer então, em relação a uma realidade tão vasta que não se deixa conceptualizar
pela mente humana sem o auxílio do próprio divino, a menos que ela mesma se
digne auxiliar esse pobre e grotesco instrumento de medida com o qual se intenta medir o incomensurável? O registo
poético permite-me, talvez, superar distâncias infindas, imaginando tropos que
me ajudariam a esboçar o que Deus possa ser. O que, desde logo, me parece ser
um recurso de astúcia artística que pode satisfazer um esteta mas não a alma
que buscasse uma certeza íntima e satisfatória, ou seja, artifício que não
passa afinal de uma vaidade ridícula de substituir a questão da transcendência
divina pelo mero sortilégio do violino quebrado que, afinal, toda a arte dos
homens é. Não há maneira de escapar a esta aporia: se Deus não me ajudasse a
pensá-lo e a chegar até ele, eu seria incapaz de o pensar e de chegar até ele,
mesmo que andasse séculos e subisse verticalmente de avião em direcção aos
céus. Tal hipótese suporia que Deus se interessasse desde logo pela minha patética
busca dele, o que não passaria de uma maneira inaceitável de erguer o meu pobre
Ego miseravelmente pequeno de humano a dimensões de vertigem: o que é que me pode tornar digno de ser
amado e acolhido pelo amor de Deus?» In João Medina, O Silêncio de
Deus em Auschwitz, Aleph, seguido de O Museu do Holocausto, Edição da CM de
Cascais, 2001, ISBD 972-637-089-2.
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