domingo, 6 de julho de 2014

Em Auschwitz. O Silêncio de Deus. João Medina. «… aquilo que excede todo o pensamento e que habita para além das alturas da morada celestial (...) Aquele que está acima de toda a essência e toda a inteligência…»

Cortesia de wikipedia

Aleph
«(…) Contudo, ao escrever e pensar estas limitações ao acesso do divino pela mente humana, não estarei, afinal, a imaginar Deus, a postulá-lo com uma hipótese ou uma premissa garantida? Creio que não. Limito-me, sim, a conceber que Deus é uma entidade desde logo inconcebível, porque, se existisse, ultrapassaria tudo quanto a nossa pobre mente seria capaz de pensar dele: inconcebivelmente vasto, complexo, misterioso, transcendente, inacessível, inatingível, incompreensível, etc. Só recorrendo ao quia absurdum seria o meu espírito capaz de o aceitar como graniticamente existente e susceptível de ser conhecido. Não intento sequer aproximar-me desse deserto imenso e interminável que seria Deus ou desse mar profundo e infinito sem margens finais em lado nenhum do espaço universal que seria, assim, a sua imensidão inexaurível, a sua prodigiosa e derrotante grandeza sem quaisquer termos ou fronteiras ou limites.
Por isso, à maneira da teologia negativa da Idade Média, desde o corpus areopagiticum do chamado pseudo-Dionísio (século VI d.C.), que imprimiu um selo platónico a toda a escolástica e mística da Idade Média, fascinando todo o seu pensamento, o pseudo-Dionísio definia Deus como extra-ser, aquilo que excede todo o pensamento e que habita para além das alturas da morada celestial (...) Aquele que está acima de toda a essência e toda a inteligência (De mysthica Theologia), só posso conceber a minha própria incapacidade de o conceptualizar e abarcar, a minha nativa e insuperável inabilidade para imaginar o que Deus possa ser ou como possa ser, definindo-o negativamente. Nenhum voo vertical me levantaria, assim, do chão miserável onde rasteja o meu espírito, como a serpente bíblica condenada por Deus por ter auxiliado Adão e Eva a julgarem pelos próprios intelectos. Deus fica sempre para além de tudo quanto eu possa imaginar ou intentar racionalmente exprimir, a menos que desde logo o decretasse como cognoscível, ser a amar, ser amado, e nessa medida susceptível de ser atingido pelo meu caminho persistente para ele ou de algum modo erguido até ele pelo próprio amor que ele me tivesse, à maneira de todos os utopistas individuais que se chamam místicos, viajantes temerários que buscam tão ardentemente uma incógnita terra buscada e sonhada, a qual, mesmo que não existisse, Deus a criaria para que a achassem algum dia.
Crer em Deus supõe, ao fim e ao cabo, a graça de crer nele, a vontade que é só dele de se fazer amado por mim, a graça que ele me desse para que eu o amasse, o pudesse ou quisesse amar. Só com a sua ajuda, portanto , a minha alma poderia achá-lo ou concebe-lo, o que é, evidentemente, absurdo para quem não parta de um pressuposto de crença prévia nele, como é o nosso caso. Como é que eu posso imaginar esse espantoso ser inimaginável, a menos que previamente me sinta dotado da capacidade, ou do mérito, de por ele ser encaminhado, ou erguido, para a sua esfera transcendente, ou capaz de anular a infinita distância que me separa do seu trono pela simples presença de uma vontade que, no fundo, me anula e supera, de molde a encurtar essa infinidade espacial que me separa de Deus e, deste modo, tornar possível o meu caminho para ele? Simone Weil, ardente enamorada de Cristo, supunha que o ser humano é uma flor que Deus se abaixa a colher porque só ele é capaz do infinito amor que tal gesto de humildade implica. A vinda do seu filho à terra e o seu sacrifício eram uma prova suprema deste mesmo amor desta infinita humildade dadivosa e sacrifical do amor de Deus pelos homens, deste sacrifício por nós. Mas como posso aceitar esta postura, se não creio em Deus nem no seu filho feito homem?
Que fazer então, em relação a uma realidade tão vasta que não se deixa conceptualizar pela mente humana sem o auxílio do próprio divino, a menos que ela mesma se digne auxiliar esse pobre e grotesco instrumento de medida com o qual se intenta medir o incomensurável? O registo poético permite-me, talvez, superar distâncias infindas, imaginando tropos que me ajudariam a esboçar o que Deus possa ser. O que, desde logo, me parece ser um recurso de astúcia artística que pode satisfazer um esteta mas não a alma que buscasse uma certeza íntima e satisfatória, ou seja, artifício que não passa afinal de uma vaidade ridícula de substituir a questão da transcendência divina pelo mero sortilégio do violino quebrado que, afinal, toda a arte dos homens é. Não há maneira de escapar a esta aporia: se Deus não me ajudasse a pensá-lo e a chegar até ele, eu seria incapaz de o pensar e de chegar até ele, mesmo que andasse séculos e subisse verticalmente de avião em direcção aos céus. Tal hipótese suporia que Deus se interessasse desde logo pela minha patética busca dele, o que não passaria de uma maneira inaceitável de erguer o meu pobre Ego miseravelmente pequeno de humano a dimensões de vertigem: o que é que me pode tornar digno de ser amado e acolhido pelo amor de DeusIn João Medina, O Silêncio de Deus em Auschwitz, Aleph, seguido de O Museu do Holocausto, Edição da CM de Cascais, 2001, ISBD 972-637-089-2.

Cortesia da CMCascais/JDACT