Variações sobre uma Ideia de Oriente
«Edward Said, um dos mais reputados intelectuais palestinianos, falecido
recentemente, antigo professor da Universidade de Columbia nos USA, sustenta na
sua obra Orientalism (1978) a tese segundo a qual a ideia
de Oriente é, no essencial, uma criação da civilização ocidental. Com efeito,
se tem sentido falar-se de uma civilização ocidental, cada vez mais universal e
planetária, não se pode dizer o mesmo em relação aos países que o imaginário
ocidental identifica como sendo orientais.
Citando Edward Said: o Oriente foi quase
sempre uma invenção da Europa, pensado desde a Antiguidade como um lugar de
fantasia, repleto de seres exóticos, de lembranças e de paisagens hipnóticas,
de experiências extraordinárias. Este Oriente está agora em vias de extinção.
Não se trata de negar a existência material e cultural de diversas culturas a
que chamamos orientais, mas da
percepção de que a imagem comum do Oriente é, antes de mais, uma construção
imaginária derivada do passado histórico de diferentes povos europeus, entre os
quais sobressaem os ingleses, os franceses, os russos e, naturalmente, os
portugueses.
Com efeito, no limite, não existe tal entidade, o Oriente ou o pensamento
oriental; o que existe, sim, são um conjunto complexo de representações nos
domínios das artes, da filosofia, da religião de cada um dos povos coloniais
europeus sobre a existência de um mundo distante, pleno de exotismo e de
fantasia, de paisagens fabulosas, lugar de meditação, de sonho e de evasão. Daí
ser possível falar-se de sensibilidade, de pensamento, de sensualidade, de
despotismo, de medicina, de sabedoria oriental, seja esse Oriente situado na
Índia ou no Japão, nas Terras do Levante ou na China dos Mandarins. Se adoptássemos
uma atitude pragmática sobre esta questão, considerando como único critério válido
o geográfico, de tal modo que o oriental seria tudo aquilo que ficaria situado
a Oriente da Europa (afinal o Oriente é, em primeiro lugar, uma orientação no espaço), mesmo esse
critério seria fonte de confusões, visto que o imaginário europeu sobre o Oriente
não se circunscreveu aos povos asiáticos, mas compreendeu, pasme-se, representações
do mundo directamente importadas do Norte de África. O critério geográfico
apenas nos assinalaria uma vasta área, tão diversificada a nível de costumes,
de tradições e crenças que supor, por exemplo, quaisquer semelhanças entre as
principais cidades da Índia e do Japão apenas nos poderia fazer sorrir.
O Oriente foi sempre para a cultura europeia o Outro imaginário de nós
próprios. Numa palavra, o Oriente tem sido sobretudo a imagem, muitas vezes
invertida, plena de sedução e de horror, daquilo que nós próprios julgamos ser.
Este sentimento do Oriente como o Outro de nós mesmos, a imagem de
algo estranho que simultaneamente nos atrai e inquieta, tão bem retratado no
romance dos anos 20 de Forster (Passage
to India) na figura de Adela, essa jovem britânica simultaneamente fascinada
e transtornada por um mundo que é a imagem negativa da sua terra natal,
constitui uma atitude generalizada que percorre a civilização ocidental desde a
Antiguidade. Se, em termos históricos, podemos situar o nascimento do Orientalismo, enquanto preocupação sistemática
com o Oriente, em 1312, quando o
Concílio de Viena autorizou o estudo académico do árabe e do hebraico nas
principais universidades europeias, a constituição de um Oriente como uma
imagem especular do Ocidente, mesmo invertida, está presente já na própria
cultura clássica antiga, como é o caso da tragédia de Ésquilo, Os Persas, cujos dramas se passam
na corte de Xerxes, ou então da peça de Eurípides, As Bacantes, que descreve o desenlace
trágico do confronto entre o oriente dionisíaco e o ocidente apolíneo em plena Hélade».
In
Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João Gouveia Monteiro,
Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo
Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da Universidade,
Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.
Cortesia da U. de Coimbra/JDACT