Que nação somos, que poderemos
ser, por onde vimos?
«(…) De ascendência e
formação monárquicas demitiu-se de oficial da Marinha, porque não quis servir nas
forças armadas da República. Foi um acto de consciência formal, que não
invalidou a sua consciência de cidadão português e de intelectual convicto dos
seus deveres de cidadania. Pode por isso prestar ao seu país, e à própria
República, o mais prodigioso serviço: criticando as instituições, procurar nos
baixios mais profundos da História nacional a razão daquilo que, no tempo dele,
era tema de reflexões literárias: as causas do que se chamava a nossa decadência.
Meio século decorrido, mais precisamente em 1959, relembrará o objectivo pragmático, reformador, de uma das
constantes do seu labor intelectual, os estudos da interpretação histórica que
aqui nos interessam: O meu objectivo não
é propriamente o de informar sobre
a História mas o de formar o espírito
da gente moça para uma visão filosófica e sociológica dos factos, como preparação
para a obra da elevação do Povo, que lhe cumpre agora empreender. A
interpretação da História pátria constituiu, efectivamente, para Sérgio um postulado necessário, um suporte
dos seus planos de reformação: Com que
espírito deveremos nós, os portugueses da minha idade e os mais moços que os da
minha idade, considerar a nação de que somos parte e os grandes factores do seu
destino? Que somos, que poderemos ser e por onde vimos? Que nos falta, que
sabemos e que faremos? Que exemplo nos dão os nossos avós, que nos ensinaram os
nossos mestres, e que atitude nos convém tomar para com o vezo mental em que
nos educaram?
Estas perguntas
inquietas e dramáticas fazia-as Sérgio
em 1920, aos 37 anos de idade, no
auge de uma juventude que fora, a um tempo, operosa, rebelde e indagadora. Que nação somos, que poderemos ser e por
onde vimos? Estas perguntas, que lança ao apresentar o primeiro volume
dos Ensaios, constituem de
certo modo o escopo de toda a sua actividade intelectual. Ao longo de uma vida
de torturado e incompreendido, a
incompreensão tem sido sempre
o meu fado, 1949, quatro
foram os escopos, os modestos
incitamentos (como diz noutra passagem, já em 1955) para as revoluções culturais ou culturais-sociais em
que se empenhou:
- a económica, pelo cooperativismo;
- a filosófica, pela reflexão problemática a partir da ciência;
- a historiográfica, pela introdução da problemática sociológica na maneira de escrever a nossa História;
- a pedagógica, na escola geral, pela instrução activa e de teor problemático, pela escola do trabalho e pelo self-government escolar.
Difícil é separar em Sérgio os quatro escopos, de tal modo
eles se interligam e completam constituindo a unidade forte do seu pensamento,
este mesmo indissociável do seu pendor dialéctico para o intervencionismo, a polémica,
a ideia feita acção. Mas, neste opúsculo, vamos tentar, sem nos esquecermos de
que o seu pensamento e a sua obra não se esgotam aí, detectar as ideias mestras
das suas concepções da historiografia sociológica, que ele utiliza como meio de
contribuir para diagnosticar e combater os
vícios históricos da sociedade» portuguesa. Pensamento dialéctico e
intervencionista que é (e que o não fosse), é em consonância com o meio e com a
época em que viveu que se encontram os parâmetros que o enformaram, o
provocaram, o condicionaram. Ora ele queixa-se (em 1949) do que foi esse mar tenebroso por onde vagueou aos
vinte anos, isto é, no final da Monarquia, no princípio do século, no tempo
da propaganda e da proclamação da República: Lúgubre, sem hábitos, cheio de cerrações, hostilíssimo. Ali, que vastidões
de amargor, que solidões tão sombrias! E depois, por aí fora, quantos embates
com a estolidez dos retóricos! Quantos com os charlatães, com os petulantes,
quantos! E com a incompreensão dos facciosos, e com a dura estreiteza dos
dogmáticos! A que atribuía Sérgio
esse mar tenebroso por onde vagueou, lúgubre, sem hábitos, cheio de cerrações, hostilíssimo?» In
Victor Sá, A historiografia sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura
Portuguesa, CV camões, Biblioteca Breve, Gráfica da Livraria Bertrand, 1979.
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