terça-feira, 22 de julho de 2014

In Memorium Memoriae. Poema. David Mourão-Ferreira. «Mármore, sim, mas mole. E vento, porque não? Mármore capaz de tudo, de tudo recolher e transmudar em nada. De transmudar o ouro, alquimia ao contrário, na poeira que o vento ao próprio vento espalha…»

Cortesia de alicejorge e jdact

«Em primeiro lugar glorificava, nos seus cantos, de entre todos os deuses, Mnemósina, mãe das musas». In Hino Homérico a Apolo

In Memorium Memoriae
«Da nem sempre sublime variedade do Mundo,
da não rara amargura,
do remorso,
de tudo,
dia a dia te nutres, dia a dia te envolves!

Dia a dias te expandes,
tão grande que és o vulto
sobreposto por vezes à linha do horizonte…
Dia a dia no dia te enforcamos, e à noite
apareces de novo no trópico do sono.
Dia a dia, no vento. Dia a dia, no tronco.

Tens na carne incorpórea, de memória, mil corpos,
e concentras nos olhos, aglutinantes, glaucos
de um verde que não é de esperança nem de escarro,
mas de lago, de lodo, de limo delinquente,
a saudade e o desprezo do mundo que te foge,
dia a dia no mármore, dia a dia no vento.

Mármore, sim, mas mole. E vento, porque não?
Mármore capaz de tudo,
de tudo recolher
e transmudar em nada. De transmudar o ouro,
alquimia ao contrário, na poeira que o vento
ao próprio vento espalha…
Mármore, sim, mas mole.
E mais que mármore Mar, que dentro de nós more.

Luta de corpo-a-corpo
no interior do corpo.
Monólogo do Tempo
no interior da alma.
Monólogo monólogo
com saltos inesperados! Monólogo no mármore
mais mole de que há memória…
Mármore, e Mar, e vento sobre o Mar…
Memória!»
[…]
Poema de David Mourão-Ferreira

In David Mourão-Ferreira, In Memorium Memoriae, Poema, ilustrações de Alice Jorge, Minotauro, 1962.

Cortesia de Minotauro/JDACT