A Inauguração
«(…) O Nazaré despedia-se com um gesto breve: voltava à noite para ver Com a Aurora? Passava pelo
Bristol antes. Agora era o Marques quem chegava, o benjamim. As telas dele eram
mais complicadas, os recortes não davam. … Cortam-se, decidiu Pacheco, olhando
as talhas repolhudas do relógio, no fundo escuro da sala. Era disso que o Teles
mais gostava, e o Norte Júnior também: ah, aqueles espelhos e aquelas pilastras
de mármore negro!... O João Franco achava uma pena, mas calava-se e serviu
outro café ao Pacheco que partiu a falar ao homem da camioneta, no Jardim do
Regedor, e tinha também que ir falar ao carpinteiro do Pátio do Tronco, para lá
estar. Assim o Teles, que era unhas-de-fome, não fizesse questão em pagar. Que
mais queria, com o preço que largara
pelos quadros?... Se não fosse ele, e arranjara-se com o Malta para a colaboração;
não fora fácil.. . O Stuart, esse é que não se ralava... O mais exigente era
sempre o Soares; que queria ser mais bem pago: tinha voltado da exposição de
Paris muito cheio de si, dizendo mal do Canto que lá vira. Uma vergonha a falta
de presença portuguesa!
José ficava ainda e chamou o João Franco de parte, estava aflito. Deixe lá, Senhor Âlmada, paga para a
semana… Ele estava à espera do Falcão, e o Stuart, que garatujava a uma
mesa, o cigarro de mortalha colado ao beiço, um fósforo partido molhado num
pequeno tinteiro de tinta da China que tirara do bolso do sobretudo; ia ao Diário de Lisboa e daí para o seu arranjinho
na Rua das Gáveas. Só às dez, ó Batista, recomendara mais uma vez o Teles, pelo
telefone, com o seu sotaque brasileiro que incitava prodigiosamente Pacheco,
nas suas discussões que eram sempre de dinheiros. O Barradas e o José não
tinham sido pagos, pelo menos na totalidade, o irmão do Viana, o da mercearia,
esse recebera por ele; entendia-se melhor com o Teles, em negócios, mas só o
Soares conseguira receber tudo, e era dos mais caros, porque os seus ares
altivos impressionavam o cliente. A Brasileira ficava como de costume, depois
da hora do café e dos jornais e do eléctrico de ir jantar a casa; durante a
tarde assim estivera, com entradas e saídas. Gualdino voltara à sua mesa,
depois de um amuo que moveu abaixo-assinados, duzentos requerentes em verso e
prosa, dezenas de celebridades, Gago Coutinho, Pascoaes e Aquilino,
jornalistas, poetas e dramaturgos, o Almada não, por históna antiga, Soares sim
e, evidentemente, José Pacheco, que veio cumprimentá-lo à mesa. Então é hoje? perguntou-lhe
amavelmente o decano, papa do Chiado.
Viera da sua biblioteca, como sempre, sem tirar o chapéu preto, de
feltro mole, moldado em tacho. Ficara à espera de resposta, as lunetas
assestadas, delicadamente, mas o seu interesse pelos quadros que tardavam
levava uma ironia de céptico que A Brasileira diariamente acalentava. Ouvira e
lera dos quadros anunciados mas não eram do seu interesse e nem fora vê-los ao
Salão. A decoração do Norte Júnior era o que era, e até a achava bem, ao lado
da Casa Havaneza, e com as mesas Sextavadas… Todos se lembravam da blague que
fazem sobre a sua geometria. Gualdino Gomes tinha os seus gostos e, sobretudo,
a sua opinião sobre os futuristas do Orpheu que eram, de modo geral, da Brasileira.
E do Chiado Terrasse; fez uma careta só ao lembrar-se daquele sarau, e do
Almada, poeta futurista e tudo, como
era? Ele não tinha assinado para a sua volta à Brasileira, hum... Não havia
de esquecer... Aquele Pacheco com diploma de arquitecto pela graça de Deus…
Olhou-o de baixo: É então hoje à noite
o grande dia? José saíra há muito com o Falcão que lhe recomendara cuidado
com o Teles e com os outros; era o seu maior admirador e desconfiava do que lhe
acontecesse naquela noite de abrocharem. Foi ao saírem do café que viram
Columbano, no passeio fronteiro, que recolhia da Academia, subindo a São
Carlos, rente às paredes, olhando só o chão.
Era, porém, um dia importante, um dia definitivo para os destinos da
arte portuguesa! Que acharia o Pessoa?
Na Revista não dissera ele que por arte
portuguesa devia entender-se uma arte de Portugal que nada tivesse de
portuguesa por nem sequer imitar o estrangeiro?... José fora-se rindo: os
destinos da arte portuguesa naquelas telas do Teles, como dizia o
Barradinhas... Ele figurara-se numa delas para que não pudesse haver dúvidas, e
o Vítor Falcão ficara estupefacto diante do quadro, e repetia-lhe agora, a
caminho do Tavares, que as figuras pintadas eram resplendentes de expressão,
que tinham alma...» In José Augusto França, José e os Outros, Almada e Pessoa, Romance dos
Anos 20, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 972-23-3546-4.
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