quinta-feira, 3 de julho de 2014

Na Cova dos Leões. Tomás da Fonseca. «E por culpa de quem, apavorada gente? Para que me acordaram? E, acordado, para que me empurraram? Ignoravam, porventura, que não tenho a fala para ocultar os pensamentos?»

Cortesia de wikipedia e jdact

Explicação necessária
«Numa reunião de delegados republicanos, efectuada em Lisboa, para tomarem conhecimento do programa apresentado pelo candidato à presidência da República, general Norton de Matos, e assentar na orientação a dar à campanha eleitoral (afirmara aquele advogado portuense que, numa igreja do Norte, um sacerdote iniciara a campanha eleitoral, dizendo aos seus paroquianos: Votem todos com o nosso pároco), Santos Silva, que fizera parte da mesa e conversava com o candidato, chamou-me para me dizer: - Lembrámos a conveniência de você aparecer na imprensa, escrevendo coisas no género que lhe é familiar. Já tem um belo tema, a pregação do sacerdote minhoto, a que se referiu António de Macedo. Aleguei razões de escusa, às quais poderia ter juntado o facto de estar ainda quente o lugar que durante um mês ocupara no Aljube. Além disso os jornais já por várias vezes tinham aludido à minha provecta idade. Deveriam chamar os novos, alguns bem preparados e aguerridos. E fiquei nisto. Mas, no dia seguinte, quis o destino que eu subisse à redacção da República, onde encontrei diversos publicistas, entre os quais perorava Rocha Martins, que, mal me viu, exclamou: - Você também deve aparecer... A hora exige-o. Escreva, por exemplo, uma carta a um pároco de aldeia, naquele seu estilo, que tanta agrada às massas. - Homem, deixe-me em paz,respondi-lhe. E contei o diálogo havido na reunião dos delegados provinciais.
Mas do grupo outros me invectivaram e com argumentos de tal peso que eu tive de vergar: - Pois bem, Carvalhão Duarte! Amanhã aqui terá a prosa que me impõe. Foi assim que apareceram no dia 8 de Janeiro de 1949, as Palavras calmas a um provinciano inquieto. O incêndio que em seguida atearam vê-lo-ão adiante, em alterosas chamas, que dir-se-ia anunciarem o dies irae da justiça divina, tão impetuosamente galgou e abrasou, em poucos dias, a pobre terra portuguesa, de ordinária resignada e apática. E por culpa de quem, apavorada gente? Para que me acordaram? E, acordado, para que me empurraram? Ignoravam, porventura, que não tenho a fala para ocultar os pensamentos? Ou julgariam que a tal provecta idade me teria levado a desertar do campo onde, durante meio século, me bati, enfrentando a reacção, quer me surgisse de coroa, quer de mitra ou de tiara, a tolher-me os passos ou a desviar a luz que alegra os corações e fortalece a alma?
Pois aí têm. E agora extingam, se virem que há vantagem, o incêndio a que não quiseram acudir, quando era ainda um pequeno fogacho, que qualquer abafaria com um simples ramo verde, ou com a sola do sapato. Por mim, não tentei o menor gesto para o dominar, porque achei bem que se lançasse e longamente ardesse, a ver se aquecia tanto o corpo arrefecido, iluminando ao mesmo tempo a legião de consciências e vontades que jazem amodorradas no indiferentismo, na miséria ou nas desilusões que os anos acarretam. Só o tempo nos dirá se realmente iluminou e pôs de pé esses amodorrados, ou se a labareda foi tão forte, que tudo haja esterilizado e reduzido a cinzas. Alguém me diz que um livro da natureza deste, posto a circular em Portugal, põe em risco, não apenas a liberdade do autor, mas ainda a sua própria vida. Embora! Morra ele, mas vivam os tristes que salpicam de lágrimas e sangue os caminhos que levam aos santuários donde regressam mais pobres e mais desventurados! Sim. Morra ele, mas vivam esses e, com eles, todos os que têm fome e sede de justiça e morra como deve morrer: no campo donde se volta livre, ou se não volta mais!

Casus belli. Palavras calmas a um provinciano inquieto
Caro Amigo:
Diz você na sua carta: O pároco da minha freguesia iniciou há dias a propaganda eleitoral com esta exortação: Votai todos com o vosso pároco! E comenta: É necessário opor-lhe, desde já, uma campanha tal que o faça recolher à sua função de pastor de almas. Porque o padre, ou representa Cristo, e nesse caso só lhe compete pregar o Amor e a Concórdia, ou é agente eleiçoeiro, e então forçoso se torna irmos ao seu encontro, a fim de o conduzirmos ao caminho de que se haja desviado. Não sei se alguém respondeu já à sua inquietação. Apesar disso, também quero acudir, na esperança de que as minhas palavras possam atenuar o alvoroço que a sua carta nos revela. Não é preciso ser-se muito lido, nem ter largo convívio com pessoas de igreja, para poder afirmar que, embora o sacerdote em causa haja lançado esse convite às ovelhas que pastoreia, não acredito que o seu exemplo seja contagioso a ponto de constituir perigo para a vitória do candidato, que o meu amigo tão ardorosamente se propõe defender.
Sucederá isso numa ou noutra freguesia minhota, onde a ignorância e a miséria enchem a igreja até à porta; mas, nas outras, como no resto do país, a prudência e o bom senso do clero evitarão que as ovelhas que pastoreia enveredem por tal caminho, onde, por vezes, há silveirais e pedregulhos de pôr medo. Demais sabe ele que o eleitor dos nossos dias há muito se encontra suficientemente esclarecido para poder votar, não por sugestões, venham de onde vierem, mas segundo o seu critério e conveniências sociais, que, quase sempre, condicionam também as económicas. Por muito que se tenha feito para limitar a propaganda de pessoas e de credos políticos, pouca gente haverá que não esteja elucidada acerca do momento que passa e, portanto, dos interesses do país e posição dos homens que se propõem governá-lo. Não pode, pois, o clero constituir excepção, sobretudo os velhos sacerdotes que, pelo muito que já viram e ouviram, e ainda pela experiência de passados embates, perfeitamente sabem que o povo deixou de ser criança, tendo atingido aquela maioridade que lhe trouxe a noção do dever e da responsabilidade, tanto dos actos que pratica, como dos que, por incúria ou negligência, deixa de praticar. Sabe, pois, o clero que as qualidades morais, a piedade, a tolerância e a bondade do povo são tradicionais; mas sabe igualmente que, quando alguém abusou desses dons naturais, raramente o povo deixou de responder com aquela coragem e civismo que a história nacional regista a cada passo». In Tomás da Fonseca, Na Cova dos Leões, Paraíso do Livro, 1958.

Cortesia de PdoLivro/JDACT