«A
política começa com a palavra. Sem a palavra, não há política. Nem democrática,
nem autoritária. Ninguém desconhece as vontades de posse e uso da palavra, que
se pretenda governar ou contestar. O monopólio da palavra é a primeira tentação
dos déspotas. O direito à palavra é a primeira pulsão dos democratas. A
liberdade de expressão é, quase sempre, o princípio de um regime. É,
certamente, o princípio das outras liberdades. Depois, tudo se complica. Além do
direito, existem os meios de comunicação. Numa sociedade moderna, não há um sem
os outros. Públicos ou privados, os meios de comunicação podem ser apropriados.
Com eles, também os direitos... E ainda há o público, a que uns chamam opinião
e outros mercado. Quem usa a palavra, exerce enorme influência sobre o público,
até aos cúmulos da manipulação. Mas nem sempre se recorda que, ao invés, o
público e o mercado podem representar uma prisão para os que se querem
exprimir. A palavra pode ser abafada por quem não quer ouvir quem lhe fale fora
dos padrões aceitáveis. Se forem as maiorias, não lhes faltará legitimidade democrática.
Mas, como sabemos, esta pode ser ditatorial. Com a palavra, nada é simples.
Do
outro lado da palavra, há os silêncios que, num regime de liberdades, são
políticos. Como já o eram, em regime autoritário, quando os que resistiam
começavam por falar. Os silêncios traduzem cumplicidade, aquiescência, medo,
submissão; mas também ordem estabelecida, interesses inconfessáveis ou oportunismo.
Em qualquer dos casos, diante do silêncio, estamos quase sempre perante uma
vontade, própria ou alheia, de exercer o poder de modo não totalmente visível!
Ou uma necessidade de ocultar parte do exercício do poder. Ou, na oposição,
perante a promessa implícita de, em caso de vitória eleitoral, manter o estilo
oculto de governação.
Todos
os países têm, diante de si, questões incómodas. Mas a qualidade da vida
pública mede-se também pela forma como os políticos, os universitários, os
jornalistas, os escritores e os interesses organizados desvendam
sistematicamente os segredos. O silêncio incomodado, de quase toda a gente,
sobre a guerra colonial portuguesa, é um exemplo flagrante de cumplicidade. São
raríssimos os estudos, livros, memórias, filmes ou debates sobre a guerra, seus
antecedentes e fim. Raras são as pessoas que ousam exprimir-se, total e
livremente, sobre o assunto. As duas poderosas ortodoxias, a colonialista e a
independentista, vigoram mais ou menos impunes. Ainda por cima, são protegidas
pelos fundadores do novo regime: os militares e os civis que, tendo feito a guerra
em nome da legalidade do Estado e da legitimidade histórica, se sublevaram
contra ambas. Portugal fez bem uma má guerra, fez mal uma boa descolonização.
Ninguém ficou sem culpas ou sem contradição. Daí o silêncio, que tão lentamente
se vai quebrando.
Geralmente,
os regimes defendem-se. Os governos e as administrações protegem-se daquilo que
chamam a devassa dos assuntos de Estado.
Como se os assuntos de Estado não fossem necessariamente públicos! Invoca-se a
defesa perante outros Estados, assim como criminosos, subversivos ou
terroristas. Mas, salvo excepção, é da opinião pública que governos e
administrações se defendem. Um poder misterioso, como diz o complacente
eufemismo, é um poder inacessível. Quem conhece os segredos do poder, conhecerá
também a maneira de lá chegar. Quem cultiva a política do segredo sabe o que
faz. Em Portugal, o vasto domínio secreto
do Estado e da política tem longas tradições. Os políticos autoritários
cultivam o segredo como quem respira. Os políticos democráticos, por insegurança,
nunca se converteram à visibilidade pública. Os interesses quase sempre agiram
pela calada e assim pretendem continuar. A Igreja e as Forças Armadas,
cultivando com zelo os mistérios da fé e os segredos da defesa, são partidários
da ocultação de parte da vida pública». In António Barreto, Os Silêncios do Regime,
Ensaios, Imprensa Universária, nº 96, Editorial Estampa, Lisboa, 1992, ISBN
972-33-0877-0.
Cortesia
de Estampa/JDACT