terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Paixão da Memória. O Canto da Salamandra. D. Leonor Teles. Seomara Ferreira. «Nuno Álvares é um homem aparentemente bom, ingénuo, mas um homem do destino. Antes assim. Amo a minha terra e nunca a traí, embora me acusem do contrário»

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Cur Non Utrumque
(…) A romagem prosseguia ou se iniciava, agora para outros. Em Lisboa, no ano da morte do avô, um mês e meio antes, ou perto disso, nascia ao príncipe herdeiro um outro filho a quem pôs o nome de João. Dera-o à luz uma galega que em breve irão nobilitar ou pelo menos o seu nome, Teresa Lourenço. Puseram-lhe o nome de João e vós conheceis o resto: é hoje o rei de Portugal.  Na minha família as coisas compunham-se. Meu tio João Afonso Telo recebia do rei Pedro I, agora rei, o título de conde de Barcelos e o seu senhorio, e de França continuavam a chegar notícias da guerra. Há no meu destino quatro homens com o nome de João que o marcaram. Neles não conto o meu primeiro marido, porque ele nunca representou nada para mim. Eles foram meus dois cunhados, o filho de D. Inês de Castro e de Teresa Lourenço, JuanFernandez  Andeiro e o rei de Castela, João, hoje meu genro. Nasceu em 1396, em Épila, Castela. Ainda vive e viverá, certamente, e Deus o permita pela minha filha Beatriz. Todos eles me traíram. Até o Andeiro, porque não soube recuar a tempo, ou não quis, ou apenas nada poderia já mudar o seu destino.
Chegaram, por essas alturas, mais notícias a Trás-os-Montes de revoltas em França. Elas começaram a rebentar por todo o lado mas na Inglaterra e em França foram violentas. Os camponeses e os homens de ofícios das cidades, manobrados pelos comerciantes e mercadores ricos, ergueram armas contra a nobreza e seus reis. Mais tarde iria recordar-me disso quando chegou a minha vez, e a do rei, de sofrermos as suas diatribes, fruto da má vontade dos homens de negócios apostados em desenvolver os seus bens e riquezas com o apoio de algum monarca permissivo e servindo-se dos pobres, dos miseráveis sobreviventes da peste, das fomes, das guerras. Não foi o que meu sogro já fez, na sua guerra contra o pai, ao pretender vingar-se da morte de D. Inês? Essas uniões, em todo o país, iriam tentar destruir a firmeza de meu hipotético poder ao lado do rei. Mas a razão era outra ainda. Lá iremos.
No ano em que meu sogro, el-rei Pedro I, consegue habilmente, aproveitando-se da guerra civil que lavra em Castela, fazer troca de prisioneiros e justiças, depois de conseguir a extradição de Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves, executores de D. Inês, nasceu sob o signo do Câncer, um, mais um, filho do Prior do Hospital amancebado com a filha do morgado de Almada, Iria Gonçalves CarvaIhal. Chamaram-lhe Nuno e é hoje o Condestável de Portugal. Já vos referiram o seu nome. No grande caldeirão de interesses que ferve em Portugal, como em todas as épocas de bem e de mal, de verdade e de mentira, até alguns seres puros e bons podem pecar. Sucede sempre. Nuno Álvares é um homem aparentemente bom, ingénuo, mas um homem do destino. Antes assim. Amo a minha terra e nunca a traí, embora me acusem do contrário. Nuno Álvares terá o seu justo retrato também...» In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT