Cur
Non Utrumque
(…)
A romagem prosseguia ou se iniciava, agora para outros. Em Lisboa, no ano da
morte do avô, um mês e meio antes, ou perto disso, nascia ao príncipe herdeiro
um outro filho a quem pôs o nome de João. Dera-o à luz uma galega que em breve
irão nobilitar ou pelo menos o seu nome, Teresa Lourenço. Puseram-lhe o nome
de João
e vós conheceis o resto: é hoje o rei de Portugal. Na minha família as coisas compunham-se. Meu
tio João Afonso Telo recebia do rei Pedro I, agora rei, o título de conde de
Barcelos e o seu senhorio, e de França continuavam a chegar notícias da guerra.
Há no meu destino quatro homens com o nome de João que o marcaram. Neles não
conto o meu primeiro marido, porque ele nunca representou nada para mim. Eles
foram meus dois cunhados, o filho de D. Inês de Castro e de Teresa Lourenço,
JuanFernandez Andeiro e o rei de
Castela, João, hoje meu genro. Nasceu em 1396, em Épila, Castela. Ainda vive e viverá, certamente, e Deus o
permita pela minha filha Beatriz. Todos eles me traíram. Até o Andeiro, porque
não soube recuar a tempo, ou não quis, ou apenas nada poderia já mudar o seu
destino.
Chegaram,
por essas alturas, mais notícias a Trás-os-Montes de revoltas em França. Elas
começaram a rebentar por todo o lado mas na Inglaterra e em França foram
violentas. Os camponeses e os homens de ofícios das cidades, manobrados pelos
comerciantes e mercadores ricos, ergueram armas contra a nobreza e seus reis. Mais
tarde iria recordar-me disso quando chegou a minha vez, e a do rei, de sofrermos
as suas diatribes, fruto da má vontade dos homens de negócios apostados em desenvolver
os seus bens e riquezas com o apoio de algum monarca permissivo e servindo-se
dos pobres, dos miseráveis sobreviventes da peste, das fomes, das guerras. Não
foi o que meu sogro já fez, na sua guerra contra o pai, ao pretender vingar-se da morte de D. Inês? Essas uniões, em todo o país, iriam tentar
destruir a firmeza de meu hipotético poder ao lado do rei. Mas a razão era
outra ainda. Lá iremos.
No
ano em que meu sogro, el-rei Pedro I, consegue habilmente, aproveitando-se da
guerra civil que lavra em Castela, fazer troca de prisioneiros e justiças,
depois de conseguir a extradição de Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves, executores
de D. Inês, nasceu sob o signo do Câncer, um, mais um, filho do Prior do
Hospital amancebado com a filha do morgado de Almada, Iria Gonçalves CarvaIhal.
Chamaram-lhe Nuno e é hoje o Condestável de Portugal. Já vos referiram o seu
nome. No grande caldeirão de interesses que ferve em Portugal, como em todas as
épocas de bem e de mal, de verdade e de mentira, até alguns seres puros e bons
podem pecar. Sucede sempre. Nuno Álvares é um homem
aparentemente bom, ingénuo, mas um homem do destino. Antes assim. Amo a minha
terra e nunca a traí, embora me acusem do contrário. Nuno Álvares terá o seu
justo retrato também...» In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998,
Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.