«(…) Depois foi ao Hyde Park e deitou-se na relva quente,
abriu um pouco as pernas para o sol entrar. Ser mulher era uma coisa soberba.
Só quem era mulher sabia. Mas pensou: será
que vou ter que pagar um preço muito caro pela minha felicidade? Não se
incomodava. Pagaria tudo o que tivesse de pagar. Sempre pagara e sempre fora
infeliz. E agora acabara-se a infelicidade. Ixtlan! Volte logo! Não posso mais
esperar! Venha! Venha! Venha! Pensou: será
que ele gostara de mim porque sou um pouco estrábica? Na próxima lua
cheia perguntaria a ele. Se fosse por isso, não tinha dúvida: forçaria a mão e
se tornaria completamente vesga. Ixtlan, tudo o que você quiser que eu faça, eu
faço. Só que morria de saudade. Volte, my
love. Sim. Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e
perdoaria. Afinal de contas, a pessoa
tinha que dar um jeito, não tinha? Foi o seguinte: não aguentando mais,
encaminhou-se para o Picadilly Circle e achegou-se a um homem cabeludo. Levou-o
ao seu quarto. Disse-lhe que não precisava pagar. Mas ele fez questão e antes
de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava necessitada
de dinheiro. Ficou furiosa, porém, quando ele não quis acreditar na sua
história. Mostrou-lhe, quase até o seu nariz, o lençol manchado de sangue. Ele
riu-se dela.
Na segunda-feira de manhã resolveu-se: não ia mais trabalhar
como datilógrafa, tinha outros dons. Mr. Clairson que se danasse. Ia era ficar
mesmo nas ruas e levar homens para o quarto. Como era boa de cama,
pagar-lhe-iam muito bem. Poderia beber vinho italiano todos os dias. Tinha
vontade de comprar um vestido bem vermelho com o dinheiro que o cabeludo lhe
deixara. Soltara os cabelos bastos que eram uma beleza de ruivos. Ela parecia
um uivo. Aprendera que valia muito. Se Mr. Clairson, o sonso, quisesse que ela
trabalhasse para ele, teria que ser de outro bom modo. Antes compraria o
vestido vermelho decotado e depois iria ao escritório chegando de propósito,
pela primeira vez na vida, bem atrasada. E falaria assim com o chefe: Chega de
datilografia! O Sr. que não me venha com uma de sonso! Quer saber de uma coisa?, deite-se comigo na cama, seu
desgraçado!, e tem mais: pague-me um salário alto por mês, seu sovina!
Tinha certeza de que ele aceitaria. Era casado com uma mulher
pálida e insignificante, a Joan, e tinha uma filha anémica, a Lucy. Vai é se
deliciar comigo, o filho de uma cadela. E quando chegasse a lua cheia, tomaria
um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com
Ixtlan.
O Corpo
Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse
homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se
terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo.
Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado. Na noite em
que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem
e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres. Cada
noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo.
Uma não tinha ciúme da outra. Beatriz comia que não era vida: era gorda e
enxundiosa. Já Carmem era alta e magra. A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada
estavam exaustos. Mas Carmem levantou-se de manhã, preparou um lautíssimo
desjejum, com gordas colheres de grosso creme de leite, e levou-o para Beatriz
e Xavier. Estava estremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para
se pôr em forma de novo. Nesse dia, domingo, almoçaram às três horas da tarde.
Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho
um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de
passas e ameixas, tudo húmido e bom. Às seis horas da tarde foram os três para
a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel. E de noite ficaram em casa
vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam
muito cansados. E assim era, dia após dia. Xavier trabalhava muito para
sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas
com uma prostituta óptima. Mas nada contava em casa pois não era doido. Passavam-se
dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem
tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinquenta. A vida lhes era boa.
Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E
comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia
biquini e um soutien mínimo para os
enormes seios que tinha. Um dia, Xavier só chegou de noite bem tarde: as duas
desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na
verdade eram quatro, como os três mosqueteiros. Xavier chegou com uma fome que
não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanhe. Estava em pleno vigor.
Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a indústria farmacêutica
que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevideu,
para um hotel de luxo. Foi uma tal azáfama a preparação das três malas. Carmem
levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma mini-saia.
Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas». In
Clarice Lispector, A Via Crucis do Corpo, Rocco, Rio de Janeiro, 1998, ISBN
85-325-0950-9.
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