«Até hoje ainda se não conseguiu descobrir qualquer pista que nos
informasse com segurança quem terá sido o doutor Martim Lopes. Da carta que de
Roma escreveu ao rei Manuel I, em 1 de Fevereiro de 1500, publicada por António Baião, que a encontrou no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, pode depreender-se que vivia habitualmente na corte
romana; e é também lícito concluir, e de um modo irrefutável, que tinha a curiosidade
aguçada para o conhecimento de novos reinos e de novas terras, pois a carta é
quase que exclusivamente dedicada a indicações sumárias sobre os seus
itinerários de andarilho. Vamos seguir essa única fonte de informação de que
dispomos sobre as suas aventuras. Começa o doutor Martim Lopes por tecer considerandos
sobre as viagens empreendidas por portugueses no decorrer do século que então
findava, fazendo especial menção das que realizaram em tempo do Infante e dos reis
Afonso V e João II; todavia, alude a elas de um modo geral, apenas reconhecendo
que todas se tinham dirigido para sul. A essas viagens havia que acrescentar a
grande expedição de Vasco da Gama, efectuada já no reinado do monarca a quem se
dirigia e que tinha levado os Portugueses à Índia e, segundo ele diz, com claro
exagero, também ao mar Vermelho. Com efeito, é bem sabido que até à data em que
a carta foi subscrita nenhuma embarcação portuguesa tinha penetrado nesse mar. Por
outro lado, não pode deixar de ser assinalado que, apesar de a notícia da
viagem de Gama se ter espalhado rapidamente pela Europa, Martim Lopes não parece
mostrar-se muito seguro da sua realização; as informações sobre essa recente e
decisiva expedição tinham-lhe chegado, aliás, por via oral, circunstância que o
aconselhava a não ser afirmativo, como deixa expresso através de duas palavras
cautelosas segundo dizem que intercala
no trecho em que a ela se refere. Verificando que a tendência dos seus
compatriotas viajantes era dirigirem-se para o Meio-Dia, e que poucos ou
nenhum, entre os que seguiam para o Norte, ultrapassavam a Inglaterra e a
Flandres, tomara ele mesmo a decisão de empreender uma viagem de horizontes
mais largos, ou seja, no sentido de fazer o conhecimento de regiões da nossa gente não sabidas, como
escreve. A carta reduz praticamente a peregrinação realizada às suas escalas
mais importantes. Diz Martim Lopes que, ao sair de Roma, se dirigira à
Alemanha, e daí descera a Esclavónia; esta designação ptolomaica (como aliás
muitas outras da missiva, o que se assinalará em cada caso) veio mais tarde a
ser substituída por Eslavónia, e integrada na Croácia; abrangia três condados,
e chegava até o Adriático. Da Esclavónia passara à Boémia (também assinalada nas
tábuas das edições ptolomaicas), à Hungria, à Polónia e à Valáquial esta última
nação era, ao tempo, um principado danubiano, que está hoje integrado na
Roménia, constituindo a área a poente desta república. Deixando a Valáquia,
entrara na Turquia, que visitara em grande parte, na Rússia (entendida aqui,
como é evidente, no sentido clássico da designação) e na Tartária, ambos
topónimos registados nas tábuas das edições quatrocentistas de Ptolomeu,
esclareça-se que a Tartária se estendia até o mar Negro, ocupando uma boa área
da actual Ucrânia. Continuando no sentido do sul, atingira o mar (ou lago)
Meotes (ou seja, o Palus Maeotes de Ptolomeu), identificável com o mar de Azove
sem qualquer sombra de dúvida. Esclarece o doutor Martim Lopes que daí se podia
passar por terra, em poucas jornadas, ao mar Vermelho, à Arábia e ao Egipto;
mas não quantifica os dias de viagem nem diz qual a via a seguir. Continuando o
seu caminho, atingira o rio Tanais (quer dizer, o Don), que em certa
cartografia medieval aparece representado a separar a Europa da Ásia; para o
signatário da carta que se está a seguir, essa separação fazia-se, porém, nos
montes Rifeios, como ele diz aliás expressamente. Os montes Rifeios são
identificáveis com os Cárpatos, e neste sentido o autor não teria razão ao
indicá-los como zona fronteiriça entre os dois continentes só, porventura, o
terá feito porque a Turquia se estendia então pela Europa, e a Turquia era
asiática. Não seria, porém, a única fronteira e ele mesmo parece dar-se conta
disso quando escreve que ali soubera que os chamados montes Hiperbóreos não
ficavam muito distantes, e que, para além deles, e não muito distanciada, se
situava a India». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros
Portugueses, Séculos XV e XVI, Afonso de Albuquerque, Editorial Caminho,
Lisboa, 1987.
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