domingo, 31 de agosto de 2014

Alquimia no 31. Fulcanelli. O Mistério das Catedrais. «Os médicos davam as suas consultas na própria entrada da basílica, à volta da pia da água benta. Foi aí que a ‘Faculdade de Medicina’, abandonando no século XIII a Universidade para viver independente»

A Alquimia
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«(…) Outras cerimónias, especialmente atractivas para o povo, se mantiveram aí durante todo o belo período medieval. Foi a Festa dos Loucos, ou dos Sábios, quermesse hermética processional, que partia da igreja com o seu papa, os seus dignitários, os seus entusiastas, o seu povo, o povo da Idade Média, ruidoso, travesso, chistoso, transbordante de vitalidade, de entusiasmo e de ardor, e se espalhava pela cidade... Sátira hilariante de um clero ignorante, submetido à autoridade da Ciência disfarçado, esmagado sob o peso de uma indiscutível superioridade. Ah!, a Festa dos Loucos, com o seu carro do Triunfo de Baco conduzido por um centauro e uma mulher-centauro, nus como o próprio deus, acompanhado pelo grande Pan; carnaval obsceno tomando posse das naves ogivais! Ninfas e náiades saindo do banho; divindades do Olimpo sem nuvens e sem enfeites: Juno, Diana, Vénus, Latona, reunindo-se na catedral para aí ouvirem missa! E que missa! Composta pelo iniciado Pierre de Corbeil, arcebispo de Sens, segundo um ritual pagão e em que as paroquianas do ano 1220 soltavam o grito de alegria das bacanais: Evohé! Evohé! - E os homens do coro, em delírio, respondiam:

Haec est clara dies clararum clara dierum!
Haec est festa dies festarum festa dierum!
(Este dia é célebre entre os dias célebres!
Este dia é dia de festa entre os dias de festa!)

Foi ainda a Festa do Burro, quase tão faustosa como a precedente, com a entrada triunfal, sob os arcos sagrados, de mestre Aliboron, cujos cascos pisavam outrora a calçada judia de Jerusalém. O nosso glorioso Christophore era aí celebrado num ofício especial em que se exaltava, após a epístola, esse poder asinino que valeu à Igreja o ouro da Arábia, o incenso e a mirra do país de Sabá. Paródia grotesca que o sacerdote, incapaz de compreender, aceitava em silêncio, a cabeça curvada sob o ridículo lançado às mãos cheias por esses mistificadores do país de Sabá ou Caba, os cabalistas em pessoa! E é o próprio cinzel dos mestres imagistas do tempo que nos confirma estes curiosos divertimentos.
Com efeito, na nave de Notre-Dame de Estrasburgo, escreve Witkowski, o baixo-relevo de um dos capitéis dos grandes pilares reproduz uma procissão satírica em que se distingue um porco, portador de uma pia de água benta, seguido de burros vestidos com hábitos sacerdotais e de macacos munidos de diversos atributos da religião, assim como uma raposa encerrada num relicário. É a Procissão da Raposa ou da Festa do Burro. Podemos acrescentar que uma cena idêntica, com iluminuras, figura no folio 40 do manuscrito n.º 5055 da Biblioteca Nacional. Foram enfim estes costumes bizarros, em que transparecia um sentido hermético por vezes muito puro, que se renovavam em cada ano e tinham por teatro a igreja gótica, como a Flagelação da Aleluia, na qual os meninos de coro expulsavam a grandes golpes de chicote os seus ruidosos sabots (pião com perfil de cruz) para fora das naves da catedral de Langres; o Cortejo de Carnaval, a Diabrura de Chaumont; as procissões e banquetes da Infantaria de Dijon, último eco da Festa dos Loucos, com a sua Mãe Louca, os seus diplomas rabelaisianos, o seu estandarte em que dois irmãos, pés com cabeça e cabeça com pés, se divertiam a descobrir as nádegas; o curioso Jogo da Pelota, que se disputava na nave de Saint-Etienne, catedral de Auxerre que desapareceu cerca de 1538; etc.

A catedral é o refúgio hospitaleiro de todos os infortúnios. Os doentes que vinham implorar a Deus o alívio dos seus sofrimentos em Notre-Dame de Paris permaneciam nela até à sua cura completa. Destinavam-lhes uma capela situada perto da segunda porta e iluminada por seis lamparinas. Aí passavam as noites. Os médicos davam as suas consultas na própria entrada da basílica, à volta da pia da água benta. Foi aí que a Faculdade de Medicina, abandonando no século XIII a Universidade para viver independente, veio dar as suas sessões e se fixou até 1454, época da sua última reunião, convocada por Jacques Desparts». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge, 1975.

Cortesia E70/JDACT