Uma
Constelação Única
«Em
Junho de 1502, César Bórgia
conduziu as suas tropas através dos montes Apeninos, no Centro de Itália,
varrendo tudo no seu avanço para norte em direcção à Romagna, ocupando cidade
após cidade, com cada movimento seu a espalhar o terror mesmo antes da sua
chegada. Era a terceira vez em igual número de anos que Bórgia lançava
uma campanha agressiva para conquistar a Romagna, a longínqua região nordeste
de Itátia situada entre Bolonha e Ancona. Nas duas invasões anteriores, mostrara
uma hostilidade cada vez maior para com Florença, cujo território
desprotegido fazia fronteira com a região. A cidade não tinha um exército
permanente para a defender e os seus piores receios rapidamente se confirmaram.
Em breve os homens de Bórgia faziam uma incursão em território
florentino, e ele mandou dizer a Florença que desejava discutir um assunto de
grande importância. Esta mensagem causou apreensão entre os senhores que governavam
a cidade, e de imediato, a 22 de Junho, enviaram uma delegação formada por Francesco
Soderini, bispo de Volterra, e Nicolau Maquiavel, o seu mais hábil
negociador diplomático, numa delegação de dois homens, para se encontrarem com Bórgia
e descobrirem as suas intenções. Depois de cavalgarem a toda a brida, ao final
desse dia, Soderini e Maquiavel chegaram a Pontasieve, onde foram
informados por um padre em fuga de que Bórgia se desviara de forma inesperada
da sua trajectória e, sem perder um único homem, tinha tomado a cidade de Urbino,
de uma importância vital do ponto de vista estratégico. Ninguém sabia ao certo
o que estava a acontecer: uns diziam que o duque de Urbino fugira, outros
diziam que ele havia sido feito prisioneiro e outros ainda que fora morto. Numa
única coisa todos concordavam: que Bórgia se apoderara da cidade por
meios traiçoeiros. Maquiavel escreveu então para Florença: Vossas Senhorias deverão prestar atenção a este estratagema, bem como à
combinação de uma velocidade notável com uma sorte extraordinária. As tácticas
de Bórgia consistiam em instalar-se
em casa de alguém antes que essa pessoa desse por isso, como aconteceu no
caso do duque de Urbino, cuja morte foi
anunciada mesmo antes de alguém saber que ele estava doente.
Cavalgando
o mais depressa que os seus cavalos permitiam, Maquiavel e Soderini
chegaram a Urbino dois dias mais tarde, pouco depois do anoitecer. Bórgia
já tinha sido informado de que iam a caminho e ordenou que fossem levados de
imediato à sua presença, não dando aos dois emissários sequer tempo pata se
prepararem nem para mudarem as roupas de montar, gastas e empapadas em suor. No
meio da escuridão, foram obrigados a atravessar o pátio e a subir as escadas do
palácio ducal, que servia de residência a Bórgia. As portas foram
aferrolhadas assim que eles entraram, com sentinelas armadas do lado de fora; Soderini
e Maquiavel encontraram-se sozinhos no palácio vazio, onde Bórgia os
esperava à luz de uma única vela
tremeluzente que só vagamente deixava ver a figura alta, vestida de negro dos
pés à cabeça, sem qualquer joia nem ornamento, os traços brancos serenos tão
perfeitos como os de uma estátua grega, e com igual imobilidade. Talvez a beleza
fria desses traços de mármore começasse já a ser arruinada pelas pústulas que o
levaram a usar mais tarde geralmente uma máscara.
Bórgia desferiu um
ataque contra os emissários florentinos, ameaçando-os: Não estou satisfeito com o vosso governo. Como posso confiar em vós,
como posso ter a certeza de que não me atacareis? Deveis mudar o vosso governo
e prometer apoiar-me, porque eu não tenciono permitir que este estado de coisas
continue. A atitude de Bórgia era suficientemente clara: não
aceitaria mais a neutralidade de Florença em relação a si. Se Florença não
mudasse o seu governo republicano de espírito independente e o substituísse por
um favorável à sua causa, ele seria capaz de resolver o assunto pelas próprias
mãos. E terminou com ar ameaçador: Se não
me quereis como amigo, encontrar-me-eis como inimigo. Maquiavel
ficou sem dúvida desmoralizado e impressionado com esta actuação. A lenda
assassina de Bórgia precedera-o: este homem, que fez os florentinos tremer e Roma chorar, era capaz de qualquer
coisa. No entanto, Maquiavel tinha também suficiente experiência
diplomática para reconhecer que a declaração de Bórgia não era exactamente
o que parecia. Teve a percepção de que Bórgia fazia bluff. Mas porquê?» In Paul Strathern, O Artista, o
Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram,
Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
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do CAutor/JDACT