Uma
Constelação Única
«(…)
Leonardo, Maquiavel e Bórgia: à medida que as vidas destes três indivíduos tão
díspares se desenrolam, vemos como cada um deles ilustra um aspecto do
Renascimento: a sua arte, a sua filosofia e as suas guerras. Bórgia era o actor
que se pavoneava no palco, Maquiavel conspirava o argumento sinuoso, enquanto
Leonardo pintava o décor e
desenhava os engenhosos dispositivos mecânicos que mudavam o cenário. A
história conturbada de Itália durante o Renascimento produziu homens de génio,
assim como ogres, grande parte
das maiores obras de arte conhecidas da humanidade e esquemas ambiciosos como
nunca tinham sido vistos antes. Acontecimentos negros e horrendos estavam
muitas vezes na base das glórias do Renascimento, e tanto a glória como o
horror perpassam nas vidas de Leonardo, Maquiavel e Bórgia.
No
momento em que o Renascimento desabrochava em pleno, estes três homens
Percorreriam durante alguns meses o mesmo caminho, atraídos uns para os outros
em parte pela sorte, em parte por elementos intrínsecos ao seu próprio carácter.
No ano de 1502, desde as neblinas do
Outono até meados do Inverno lamacento e gelado, Bórgia, Maquiavel e Leonardo viajaram
ao lado uns dos outros através de montanhas, vales longínquos e cidades nas colinas
da Romagna italiana. Foi um período de um significado extremo e de considerável
perigo para todos eles, porque cada um à sua maneira ia brincando com o fogo.
O
tempo que os três passaram juntos pode ter sido breve, mas exerceria uma
influência duradoura na vida de cada um, de uma maneira ao mesmo tempo
grandiosa e mesquinha. Enquanto trabalhou com Bórgia, Leonardo descobriu a paisagem
que um dia serviria de pano de fundo misterioso à Mona Lisa; desenvolveu
também alguns dos seus esquemas mais revolucionários. Um destes discutiria ele
com Maquiavel e, mais tarde, os dois lançariam um vasto projecto que tentava
concretizar a ideia ambiciosa de Leonardo.
Bórgia,
por seu lado, tinha ambições para estabelecer o seu reino pessoal na Romagna,
primeiro passo do sonho grandioso de unir a Itália e de regressar às glórias do
Império Romano. Não foi sem motivo que ele adoptou um lema que incluía o seu
homónimo da Antiguidade: Ou César, ou
nada! Como resultado, Maquiavel faria de César Bórgia o herói de triste fama da sua obra O
Príncipe, que chocou o mundo, revolucionou o pensamento político e, em
última análise, transformou a visão que a humanidade tinha de si própria.
Espantosamente,
o encontro entre três personalidades tão díspares viria a revelar-se como uma
reunião decisiva de espíritos, em particular no que se refere a Maquiavel.
Antes deste encontro, Leonardo desenvolvia a sua visão científica do mundo: a
verdade apenas podia ser alcançada através da percepção, da observação atenta do
mundo à nossa volta, em vez de confiar nas autoridades antigas, como Aristóteles.
Entretanto, a experiência de Maquiavel nas missões diplomáticas que
desempenhara ao serviço do governo de Florença tinha-o ensinado a ver para lá
das falsas aparências do comportamento político e a tentar discernir a verdade
do que realmente acontecia. O seu encontro com Leonardo levá-lo-ia a procurar uma
base científica para o que aprendera. Também Maquiavel acabaria por compreender
que a verdade apenas pode ser alcançada através da percepção, da observação
atenta, em vez de recorrer aos antecedentes ou à autoridade. Mas, em vez de
aplicar o seu ponto de vista ao mundo em si mesmo, aplicá-lo-ia ao
comportamento das pessoas que o rodeavam. Na política, o poder era o princípio
efectivo. Conquistá-lo e agarrar-se a ele: era nisto que residia a verdade
subjacente aos assuntos humanos. E, para Maquiavel, Bórgia viria a encarnar a
aplicação implacável desta verdade política. Não havia lugar para a ilusão na
busca do poder político». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o
Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do
Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT