O
Andróptero
«(…)
A nossa existência, em lugar de se erguer ágil e leve como um ser alado para
uma residência superior, precipita-se na materialidade e se extravia, se turva , e, ao vacilar, é tomada de vertigem, como se
estivesse embriagada. Portanto, ao delírio alado e transcendente, ao
impulso aerostático de que se fala no Fedro, contrapõe-se a embriaguez
sensorial e finitizante, esse destino de tudo quanto cai e que também se afirma
em nossa alma com não menos força. Enquanto este último impulso nos reveste dum
corpo terrestre, o primeiro afã aponta para a reputação de todo o corpóreo, de
tudo o que impede a ascensão divina do andróptero. A virtude das asas consiste em levar o que é pesado para as regiões
superiores. Encontramos aqui uma verdadeira doutrina da liberdade e da libertação
para a alma oprimida do homem. É a doutrina das Ideias que desempenha essa
função desopressiva e arejante, comovendo as muralhas da finitude e dilatando o
espaço de nosso exercício espiritual. Essas Ideias, historicamente tão famosas,
não devem ser compreendidas como noções abstraídas das realidades sensíveis, da
maneira pela qual entendemos comummente as nossas noções e conceitos, pois
dessa forma não seriam originais, mas
sim cópias; seriam realidades mais
singelas, por esquemáticas, e não mais ricas que as coisas sensíveis como o são
as Ideias platónicas. O conceito é
sempre mais deficiente e pobre do que a coisa que conceitua, pois reproduz uma
forma sensível, sendo portanto uma simples cópia ou imitação, enquanto as
Ideias não são naturezas derivadas, mas sim Ser original, matrizes absolutas. A
Ideia é justamente o contrário de um conceito, que está sempre aquém do
sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto o
conceito nos encerra no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um
dado insuperável, as Ideias nos lançam num processo infinito de perfeição e de
plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato. A presença das Ideias é
assinalada pela irrupção da possibilidade. Como diz Füller: … no sentido mais profundo da palavra, todas
as Formas continuam a ser princípios morais e a revestir o halo socrático. As
Ideias platónicas são ideais e sendo ideais são objectos de adoração. Nada têm de
uma reprodução friamente científica e post
mortem da natureza e do conteúdo da beleza, da santidade e da verdade. Não
são um mapa mas sim um panorama
idealizado do Universo, pintado com todas as cores dos desejos da alma.
As
Ideias se comportam como uma realidade completa em relação à realidade
incompleta do mundo, como algo expressado em relação ao infuso e embrionário,
como o infinito em relação ao finito. Exercem, portanto, um papel distensivo e
libertador, pois nos facultam a evasão da pura constatação fáctica e do confinamento
dos sentidos e dos conceitos. Apesar de realizadas, imóveis e estáticas, são o
princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em constante
radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser. É essa tensão, essa marcha
rumo às constelações infinitas do mundo eidético, esse Eros cosmogónico, que mantém
o Universo em existência». In Vicente Ferreira da Silva, Dialéctica das
Consciências, Ensaios, Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2002, ISBN 972-27-1166-0.
Cortesia
da INCM/JDACT