Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) Mas como se explica então
o anonimato? Esclarece Révah, com argumentação, em nosso entender, aqui
um pouco mais frouxa. Il est possible
d'expliquer I’anonymat à n’importe quelle date de n’importe quel auto portugais
du XVeme siècle. O Auto não foi impresso em 1536, que é apenas um terminus
a quo, mas entre 1536 e 1560 (final da actividade de Germão
Galharde, que teria sido o impressor). Para evitar a perseguição
inquisitorial a Gil Vicente, expressa em particular no Index de 1551 (recorde-se que, das doze obras em
vulgar censuradas, sete são autos de Gil Vicente), a edição não traz o nome do
autor. Será assim? Parece-nos
difícil prová-lo, não tanto por se tratar de um auto chamado de devaçam, não herético, mas principalmente
porque a data de 1536 está lá,
gravada na portada, e neste ano ainda não havia Indices portugueses...,
pelo menos o primeiro conhecido é de 1547.
Por outro lado, se o famoso autor é Gil Vicente, quem o desconheceria na época e de que
serviria então o anonimato (a que Révah até chama semianonimato)? Isto, não obstante o esforço enorme que
realizou para demonstrar que aquela data de 1536 não é a da impressão da obra, mas a da composição da portada,
o que se aceitaria se a Obra da Geraçã humana contivesse um
colofão com a data precisa da edição, o que não se verifica. Parece-nos até
detectar, neste aspecto, uma certa contradição na argumentação de Révah, quando
escreve:
- On peut gager que les premières éditions de nos deux Autos commençaient par une indication semblable à celle du premier Autos (sic) das Barcas: Auto de moralidade composto per Gil Vicente, por contemplaçam da serenissima e muyto catholica raynha dona Lianor nossa senhora: e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e muy alto rey dom Manuel, primeíro de Portugal deste nome.
Já se perguntou, Costa Pimpão, e com razão, que tinham os inquisidores que ver com representações doutrinalmente
impecáveis? Respondeu-se (Révah) que o Auto de Deos Padre foi
definitivamente proibido pelo Index de 1624, sendo embora uma obra de pura
devaçam, mas a resposta não satisfaz. Conviria antes citar exemplos
retirados dos Indices de 1551, 1559, 1564, ou mesmo 1581 ou 1597. Estudámos o critério determinado
no Index
de 1624 pelo purificador dos purificadores, Fernão Martins Mascarenhas, a propósito
de um outro auto anónimo do século XVI o Dom Andre, e pudemos reconhecer como
é bem diferente do que fora seguido em 1551.
Outro argumento pró-vicentino apresentado por Révah consiste em afirmar que o Auto
foi representado perante a corte do rei Manuel (representação que Teófilo
Braga foi o primeiro a referir), e, portanto, só um autor como Gil Vicente
teria esse privilégio. E pergunta: como
se explicaria que um émulo de Gil Vicente, se o houve, desaparecesse logo
completamente da cena literária? Invoca, a propósito, o testemunho de
quatro grandes polígrafos da época, que não conheceram outro dramaturgo de
renome senão Gil Vicente: André de Resende, Garcia de Resende, Fernando
Oliveira e João de Barros. Mas, como se poderá defender que o Auto
foi representado na corte, com base somente neste passo de uma fala do lavrador Joam d’Acenha:
Tomay vos hos ovos antes,
e a cestinha com a palha,
ca, bofee, si Deos me valha,
que nem ho Juyz d’Abrantes,
nem ho porteyro dos Infantes
nam me chimparam daqui.
In Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura
Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O
Pernix Lysis, Lisboa, 1996.
Cortesia da AP. de História/JDACT