sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Diálogo de Civilizações Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido. Gouveia Monteiro. «A sociedade chinesa é elevada a modelo ideal tanto do ponto vista religioso como político. A religião chinesa, identificada com o pensamento confuciano, surge aos olhos dos filósofos ocidentais como o modelo da vida religiosa»

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Variações sobre uma Ideia de Oriente
«(…) A importância da cultura oriental na delimitação dos problemas político-religiosos do Ocidente só recentemente tem sido investigada. Culturas tão significativas como a chinesa e a indiana não eram estudadas por si mesmas, mas antes como lugares privilegiados onde se poderiam perscrutar soluções para os problemas que atormentavam a Europa na modernidade. Em torno da adesão afectiva em relação a países como a China e a Índia jogavam-se os principais conflitos que inquietavam os europeus. Ainda antes da indomania, romântica, que, como vimos, só se tornará relevante a partir dos finais do século XVIII, o interesse da Europa culta, num primeiro momento, encontra-se totalmente centrado na vivência religiosa e política da sociedade chinesa. Após a publicação de diferentes obras de padres jesuítas, nas quais é já possível descortinar uma sinofilia mais ou menos disfarçada, vários conflitos de ideias irrompem, no seio dos quais a referência ao Oriente é apenas um pretexto. O primeiro deles, e o mais desinteressante para nós... prende-se com a conciliação dos dados bíblicos com os relatos chineses sobre o seu próprio passado. A ideia de uma história da humanidade encerrada na putativa distância temporal que medeia o paraíso adâmico e as casas reais europeias sofre um abalo considerável.
A dúvida instala-se em saber se a narrativa do belo livro do Génesis é apenas uma entre múltiplas legitimações da génese dos povos, neste caso do judeu. Para contornar esta suposição, preservando a ideia de que o Ocidente é o paradigma ideal da humanidade, surgem as hipóteses mais extravagantes, como aquela que sugere a mesma raiz étnica entre os egípcios da Antiguidade e os chineses, tese supostamente comprovada pela contiguidade entre os tipos de escrita assentes em ideogramas. Se nos recordarmos que, em 1681, nos finais do século XVII, Bossuet, considerado legitimamente como pai da filosofia da história moderna, ainda concebe esta última como um percurso linear e providencial de poucos milhares de anos entre o paraíso edénico e a fundação do Sacro Império Romano do Ocidente, compreendemos o alcance da revolução de mentalidades que a descoberta do Oriente longínquo irá proporcionar a curto prazo no Ocidente. Como afirma Marc Crépon, especialista na área da filosofia da cultura (o autor de Geografia do Espírito), a história da humanidade deixa de começar com a do povo judeu e já não está mais centrada no Próximo-Oriente e na Europa. Nada autoriza a privilegiar o Ocidente no quadro histórico das diversas nações que povoam a Terra. Pelo contrário, numerosas razões incitam a inverter a ordem de prioridade. Com efeito, poucos anos após a publicação do referido ensaio de Bossuet, já em pleno Século das Luzes, o interesse dominante passará a ser a China, não tanto por ela própria, mas como exemplo contrário do que se deplorava na Europa. A sociedade chinesa é elevada a modelo ideal tanto do ponto vista religioso como político. A religião chinesa, habitualmente identificada com o pensamento confuciano, surge aos olhos dos filósofos ocidentais como o modelo da vida religiosa, pois encontrar-se-ia despojada de superstições e intolerâncias, advogando, no juízo destes filósofos, um deísmo salutar. Por sua vez, o regime político chinês surge aos seus olhos como o exemplo perfeito de um despotismo esclarecido, em que o Imperador norteia a sua acção pelo interesse geral e pelo cumprimento escrupuloso da lei. Voltaire, mais do que qualquer outro filósofo deste século, torna-se o paladino do modelo chinês, refutando como injustas as críticas daqueles que, como o Barão de Montesquieu, suspeitavam da concentração de poderes numa mesma autoridacle. Deste modo, em Ensaios sobre os costumes e o espírito das Nações, Voltaire salienta o espírito de tolerância política e religiosa que seria apanágio da cultura chinesa. A religião de Confúcio surgia aos seus olhos como o modelo de deísmo que ele gostaria de ver implantado na Europa, tornando credível a ideia de uma religião finalmente liberta da superstição, do fanatismo e da intolerância. O confucianismo tornava-se, assim, o fundo comum de toda a autêntica vivência religiosa, na qual as fronteiras entre a moral e a religião, no limite, se desvaneceriam. Mas o fascínio de Voltaire não se cingia apenas à diferença de atitude que encontrava na religião chinesa; o reinado do imperador chinês K'ang Hi, o segundo imperador da última dinastia (Qing ou Ch’ing), a dinastia dos Manchus, surgia-lhe como protótipo do ideário político e governativo que gostaria de ver implementado na Europa. Deixando na sombra a evidente propensão imperial que marcará o início do reinado dos Manchus (com a anexação do Tibete, da zona de Xinjiang e de Taiwan), Voltaire encontrará na figura deste imperador o paradigma do déspota esclarecido que ele ansiosamente procurava em todas as cabeças coroadas da Europa e das quais apenas vislumbrará algum interesse nas figuras de Catarina da Rússia e de Frederico II da Prússia». In Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João Gouveia Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.

Cortesia da U. de Coimbra/JDACT