Variações sobre uma Ideia de Oriente
«(…) A importância da cultura oriental na delimitação dos problemas
político-religiosos do Ocidente só recentemente tem sido investigada. Culturas
tão significativas como a chinesa e a indiana não eram estudadas por si mesmas,
mas antes como lugares privilegiados onde se poderiam perscrutar soluções para
os problemas que atormentavam a Europa na modernidade. Em torno da adesão
afectiva em relação a países como a China e a Índia jogavam-se os principais
conflitos que inquietavam os europeus. Ainda antes da indomania, romântica, que, como vimos, só se tornará relevante a
partir dos finais do século XVIII, o interesse da Europa culta, num primeiro
momento, encontra-se totalmente centrado na vivência religiosa e política da
sociedade chinesa. Após a publicação de diferentes obras de padres jesuítas,
nas quais é já possível descortinar uma sinofilia mais ou menos disfarçada,
vários conflitos de ideias irrompem, no seio dos quais a referência ao Oriente
é apenas um pretexto. O primeiro deles, e o mais desinteressante para nós... prende-se
com a conciliação dos dados bíblicos com os relatos chineses sobre o seu
próprio passado. A ideia de uma história da humanidade encerrada na putativa
distância temporal que medeia o paraíso adâmico e as casas reais europeias
sofre um abalo considerável.
A dúvida instala-se em saber se a narrativa do belo livro do Génesis é
apenas uma entre múltiplas legitimações da génese dos povos, neste caso do
judeu. Para contornar esta suposição, preservando a ideia de que o Ocidente é o
paradigma ideal da humanidade, surgem as hipóteses mais extravagantes, como aquela
que sugere a mesma raiz étnica entre os egípcios da Antiguidade e os chineses,
tese supostamente comprovada pela contiguidade entre os tipos de escrita
assentes em ideogramas. Se nos recordarmos que, em 1681, nos finais do século XVII, Bossuet, considerado legitimamente
como pai da filosofia da história moderna, ainda concebe esta última como um
percurso linear e providencial de poucos milhares de anos entre o paraíso
edénico e a fundação do Sacro Império Romano do Ocidente, compreendemos o
alcance da revolução de mentalidades que a descoberta do Oriente longínquo irá
proporcionar a curto prazo no Ocidente. Como afirma Marc Crépon, especialista
na área da filosofia da cultura (o autor de Geografia
do Espírito), a história da
humanidade deixa de começar com a do povo judeu e já não está mais centrada no
Próximo-Oriente e na Europa. Nada autoriza a privilegiar o Ocidente no quadro
histórico das diversas nações que povoam a Terra. Pelo contrário, numerosas
razões incitam a inverter a ordem de prioridade. Com efeito, poucos anos
após a publicação do referido ensaio de Bossuet, já em pleno Século das
Luzes, o interesse dominante passará a ser a China, não tanto por ela
própria, mas como exemplo contrário do que se deplorava na Europa. A sociedade chinesa
é elevada a modelo ideal tanto do ponto vista religioso como político. A
religião chinesa, habitualmente identificada com o pensamento confuciano, surge
aos olhos dos filósofos ocidentais como o modelo da vida religiosa, pois
encontrar-se-ia despojada de superstições e intolerâncias, advogando, no juízo
destes filósofos, um deísmo salutar. Por sua vez, o regime político chinês
surge aos seus olhos como o exemplo perfeito de um despotismo esclarecido, em
que o Imperador norteia a sua acção pelo interesse geral e pelo cumprimento
escrupuloso da lei. Voltaire, mais do que qualquer outro filósofo deste
século, torna-se o paladino do modelo chinês, refutando como injustas as
críticas daqueles que, como o Barão de Montesquieu, suspeitavam da
concentração de poderes numa mesma autoridacle. Deste modo, em Ensaios
sobre os costumes e o espírito das Nações, Voltaire salienta o
espírito de tolerância política e religiosa que seria apanágio da cultura
chinesa. A religião de Confúcio surgia aos seus olhos como o modelo de deísmo
que ele gostaria de ver implantado na Europa, tornando credível a ideia de uma
religião finalmente liberta da superstição, do fanatismo e da intolerância. O
confucianismo tornava-se, assim, o fundo comum de toda a autêntica vivência religiosa,
na qual as fronteiras entre a moral e a religião, no limite, se desvaneceriam.
Mas o fascínio de Voltaire não se cingia apenas à diferença de atitude
que encontrava na religião chinesa; o reinado do imperador chinês K'ang Hi, o
segundo imperador da última dinastia (Qing ou Ch’ing), a dinastia dos
Manchus, surgia-lhe como protótipo do ideário político e governativo que
gostaria de ver implementado na Europa. Deixando na sombra a evidente propensão
imperial que marcará o início do reinado dos Manchus (com a anexação do Tibete,
da zona de Xinjiang e de Taiwan), Voltaire encontrará na figura deste
imperador o paradigma do déspota esclarecido que ele ansiosamente procurava em
todas as cabeças coroadas da Europa e das quais apenas vislumbrará algum interesse
nas figuras de Catarina da Rússia e de Frederico II da Prússia». In
Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João Gouveia
Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em Busca do
Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da
Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.
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