Uma
Constelação Única
«(…)
Depois dos meses de Inverno que passaram juntos na Romagna, Leonardo,
Maquiavel e Bórgia separaram-se em busca dos diferentes destinos. Cada um
seria influenciado pelo que tinha vivido: cada um seria bem-sucedido e
fracassaria do seu jeito característico. Leonardo procuraria
distanciar-se das convulsões políticas para poder prosseguir com as suas
cogitações privadas; no entanto, estas mesmas especulações atraí-lo-iam de
volta à luta. Maquiavel tentaria influenciar os acontecimentos; todavia,
o facto de não o ter conseguido confirmaria no seu caso a verdade subjacente ao
mundo político. Bórgia procuraria desempenhar um papel de líder em Itália,
usando todos os meios ao seu dispor, especialmente a traição; contudo, seria a
traição que acabaria por ser a sua desgraça. O Renascimento italiano foi um
cenário onde a arte e a história, a literatura e a política, a ciência e a
guerra estavam indissoluvelmente emaranhadas: Leonardo, Maquiavel e Bórgia
estavam tão metidos neste emaranhado como quaisquer outros. Para compreender
estas três figuras, o artista, o filósofo e o guerreiro, temos primeiro de
analisar as suas vidas antes de se conhecerem uns aos outros.
A
aprendizagem de Leonardo
Leonardo
da Vinci nasceu em 1452, numa zona
campestre da montanhosa Toscana, perto da aldeia de Vinci, uns 30 quilómetros a
ocidente de Florença. Era filho ilegítimo de Ser Piero da Vinci, um notário de
26 anos que, durante a infância de Leonardo, passou a maior parte do tempo em
Florença, dedicado a uma carreira bem-sucedida. Tudo o que se sabe acerca da
mãe de Leonardo, Caterina, é que ela era uma camponesa de 25 anos, filha provavelmente
de um lenhador local.
Conhecem-se
poucos factos relativos aos primeiros anos de Leonardo e temos de nos basear em
comentários ocasionais, com frequência enigmáticos, que ele fez anos mais tarde
nos seus cadernos de apontamentos. Um dos primeiros exemplos é o comentário de
Leonardo quando escrevia sobre o voo das aves, neste caso quando observava o
voo do milhafre-real, uma ave que sobrevoava Vinci com frequência, vinda das
encostas do vizinho monte Albano:
Escrever com tanto detalhe acerca do
milhafre parece ser o meu destino, dado que a primeira memória da minha
infância me parece ser que, estando eu deitado no berço, um milhafre desceu e
varreu-me a boca aberta com a cauda, e bateu-me por diversas vezes com a cauda
na parte interna dos lábios.
A
partir deste sugestivo fragmento, Freud construiria toda uma história
psicológica para Leonardo, desde o trauma da separação da mãe e consequentes
sentimentos ambivalentes para com ela, até à sua homossexualidade e relutância
em terminar os projectos que iniciava. Infelizmente, a tradução alemã utilizada
por Freud traduzia a palavra italiana para milhafre, nibbio, como abutre, dando no geral um tom bastante
mais sinistro a esta recordação. Apesar deste erro, parece plausível o
suficiente a afirmação de Freud de que a cauda a tocar-lhe os lábios era uma
imagem disfarçada do mamilo da mãe, quando ela o amamentava. E há poucas dúvidas
de que Leonardo sofreu de facto um trauma ao separar-se da mãe. Anos mais
tarde, escreveria uma série de adivinhas, entre as quais o tema recorrente da
separação violenta de uma mãe de um filho. Um exemplo típico diz: Muitos filhos são arrancados dos braços da
mãe com golpes violentos e lançados ao chão para serem mutilados. A
resposta à adivinha é, de facto, nozes,
azeitonas e bolotas, mas a força da imagem anterior mostra-se sugestiva. Em
1456, quando Leonardo tinha quatro
anos, a Toscana foi devastada por uma grande tempestade, possivelmente um
tornado. Anos mais tarde, ele recordava ainda com grande intensidade:
Testemunhei movimentos do ar tão
furiosos que arrastaram, misturados entre si, as maiores árvores da floresta e
telhados inteiros de grandes palácios, e eu vi a mesma fúria abrir um buraco
com a sua força de remoinho, escavando uma saibreira e levando consigo pelo ar
gravilha, areia e água ao longo de quase um quilómetro.
Vários
anos depois, o rio Arno transbordou das margens, causando graves inundações em
todo o vale do Arno. A força destes dois desastres naturais que Leonardo
testemunhou na juventude permaneceria durante muito tempo na sua memória, tendo
o último desencadeado um fascínio temeroso por dilúvios e inundações que se
prolongaria por toda a sua vida». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o
Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do
Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT