O Anjo da Tempestade
«(…) O que fixei, porém, foi a imagem desse homem que, a meio caminho
da serra e do mar, foi surpreendido pela morte. Sem nunca ter sabido o seu
nome, ou o de quem o assassinou, e porquê, guardei como obrigação a necessidade
de escrever a sua história, embora não haja ninguém que me possa informar sobre
alguma coisa da sua vida, e muito menos tenham restado arquivos ou notícias que
informem sobre o assunto. A morte de um homem, em meados do século dezanove,
não passa então de uma gota de água no oceano de todas as vidas anónimas de que
o tempo se apodera, moldando-as no gesso informe de estatísticas e números
sobre os quais, presumivelmente, ficamos a conhecer uma sociedade do nosso
passado mais ou menos remoto.
Algumas vezes fiz, ou tentei refazer, esse caminho. Primeiro, numa
época em que ele mantinha as características do tempo em que o meu antepassado
o fizera: careiros de terra por entre muros que ainda mantinham as pedras em
que, no quente mês de Agosto, se iam escondendo osgas e lagartos surpreendidos
pela passagem de estranhos; casas perdidas num interior completamente isolado,
de onde espreitavam rostos de velhos ou crianças assustados pela devassa da sua
solidão, como se nunca ninguém tivesse ousado essa aventura de um interior onde
só os pássaros dispunham de liberdade plena para o seu voo; matilhas de cães
vadios que, também não se sabe porquê, apareciam a ladrar à nossa passagem.
Depois, muito mais tarde, os caminhos foram alargados, até muitos deles serem
asfaltados; as casas cresceram ao longo deles, e os habitantes já nada têm a
ver com a memória dos lugares, desconhecendo tudo sobre o que ali se terá
passado, e nada sabendo de episódios antigos, como essa morte de um homem em
plena serra, num local onde a última coisa que se pode imaginar é que alguém,
numa tarde de Agosto, possa ser surpreendido por um tiro de arcabuz à queima-roupa.
Numa dessas viagens, posso ter pensado que descobri o lugar em que tudo
se passou. Não cheguei até lá: vi o cerro de longe, e indicaram-me ter sido ali
que um homem tinha sido encontrado, morto, há muitos anos. Nessa época, posso
ter desejado ir até ao local e, varrendo a terra seca do calor, procurado
vestígios do crime: uma bala, moedas perdidas de um roubo mal executado,
pedaços de couro do vestuário, e até, quem sabe, restos de ossadas que se
tenham extraviado, e que me serviriam para um sinistro relicário familiar. No
entanto, os meus companheiros dissuadiram-me de ir até ao cerro, talvez por
inércia, talvez por se fazer tarde para o regresso, pelo que voltámos atrás,
sabendo já que iríamos chegar com a noite a cair sobre a aldeia, nesse tempo em
que as horas ainda eram dadas pelo sino de bronze da torre, e não por gravações
marteladas em altifalante de igreja. Quanto
tempo demoraram a dar pela sua falta? A pergunta insiste, comigo; e o
que me inquieta, por outro lado, é não saber se esse homem, celibatário, teria
tido alguém que esperava por ele, amante, ou criada, ou uma dessas primas
solteiras que, no seu íntimo, sonhavam com um casamento que as libertasse de
uma velhice de virgens beatas no círculo do padre». In Nuno Júdice, O Anjo da
Tempestade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, 2009.
Cortesia de DQuixote/JDACT