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Esta primeira época da cultura portuguesa que abrange os primeiros três ou
quatro reinados da monarquia é uma época de formação, porque os elementos que a
constituem ainda não estão organizados no espaço, não existe ainda um pólo que
receba, transforme, elabore e retransmita os movimentos e processos próprios de
um meio que no seu conjunto já se distingue dentro do meio ibérico. Em certa
medida cabe a esta época a designação de idade
heróica, porque é aquela em que a expressão mais popular da comunidade se
encontra nos cantos épicos. A idade
heróica, diz Menéndez Pidal, é aquela
vivida por alguns povos que, antes de terem desenvolvido a prosa
historiográfica em língua vulgar, sentem a necessidade de cultivar a sua
história, e têm de fazê-lo na única forma literária então existente, em forma
poética, em cantos públicos. Só nesta época em Portugal os encontramos.
Aliás, esta fase cultural corresponde à da conquista permanente do território,
em que o papel mais activo cabe a um bando de conquistadores que avança de
norte para sul. Podemos dizer que, do ponto de vista cultural, nesse tempo
Portugal é um espaço linguístico. Há uma população que fala o português, que tem
chefes naturais, no seio da qual já aparecem textos em português, população que
tem a sua tradição poética oral e musical na sua língua própria. Neste espaço
encontramos pequenos focos de saber clerical, baseado na escrita e no livro.
Mas são franjas de um centro cosmopolita, situado fora de Portugal: pertencem
na realidade mais à história da Igreja do que à história nacional. Basta pensar
que não cabem no nosso espaço as duas principais personalidades que aqui se
formaram, Santo António, dito de Pádua e que nós chamamos de Lisboa,
atendendo ao seu lugar de nascimento, e o Papa João XXI, mais conhecido por Pedro
Hispano, antigo abade de Vermoim. E, quanto à produção poética
autóctone, pertence sem dúvida ao espaço linguístico nacional, mas o que
sabemos dos centros donde irradiou leva-nos para fora dos limites geográficos e
cronológicos do reino de Portugal. O espaço linguístico de que falamos nem
sequer constituía uma entidade política. Abrangia a actual Galiza, todo o Norte
de Portugal, que constituía o território portucalense, e o chamado território
de Coimbra, ou conimbricense, cujo limite sul era o Mondego. A Estremadura, entre
o Mondego e o Tejo, era um território ermo e assolado pela guerra. Quanto a
Sintra, Lisboa, ninho de piratas, e sobretudo Santarém, cidade muito importante,
eram, no fim do reinado do Fundador, povoações de conquista recente, ainda
fortemente arabizadas; todo o Alentejo era teatro de guerra, embora Évora,
conquistada por um caudilho mouro aliado de Afonso Henriques, tivesse
permanecido constantemente em mãos cristãs, no meio dos fluxos e refluxos da chamada
Reconquista. Para leste, a fronteira não estava bem determinada e menos
ainda povoada. Afonso Henriques pretendeu alargar o território não só para a
Galiza, que chegou a ocupar parcialmente durante algum tempo, mas também para
Zamora, Toro, Salamanca, Valladolid, Cáceres, Badajoz, regiões onde não se
falava ainda o castelhano, mas dialectos leoneses ou moçárabes, com
características próximas do galego-português. Era uma ideia do território português diferente da que veio a realiza-se: era
um espaço que abrangia o triângulo noroeste da Península até ao Tejo.
Fora já a ideia do conde Henrique e
de D. Teresa. A resistência oferecida pelos reis de Leão e de Castela obrigou
todavia os chefes portugueses a canalizarem o seu expansionismo para o Sul,
tanto mais que as estradas romanas lhes facilitavam o caminho nesse sentido». In
António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Gradiva, Lisboa, 1991.
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