Casamento
«(…) Os que tinham aposentos nos palácios reais não ficavam tão
prejudicados, mas para quem tivera de arranjar alojamento, a vida ficara
bastante difícil.
Era necessário pagar esses alojamentos, o que significava terem de vender
roupas e jóias. Em diversas ocasiões pedira dinheiro a Filipe e ele respondera-lhe
sempre que trataria disso a seu tempo, mas nada fizera. Era verdade que ela não
insistira, principalmente porque se esquecera, mas também porque tinha vergonha
de pedinchar o que lhe pertencia por direito. Os olhares desdenhosos do
secretário e do tesoureiro de Filipe recordavam-lhe, embora sem necessidade,
que ela não tinha qualquer autoridade na corte. Então, era melhor ignorar o
problema. Infelizmente, o tio estava à espera de ser recebido e Joana
via-se obrigada a discutir as questões financeiras da sua casa, quer gostasse
quer não.
Maria abriu a porta e lá estavam o tio e o camareiro-mor. Ia sem dúvida
ser uma reunião muito séria: dois homens muito experientes e conhecedores e
ela, tão jovem e tão ignorante daqueles assuntos práticos. Trocaram-se
saudações formais e depois, olhando uns para os outros, todos esperaram que
alguém abrisse a discussão. Joana engoliu em seco, com a carta a
tremer-lhe na mão. - Sei por que motivo haveis pedido esta entrevista,
senhores, a minha mãe menciona-o. - Na verdade, Senhora, viemos informar-vos de
que nos vamos encontrar com o arquiduque esta tarde - retorquiu Dom Fradique, mostrando-lhe
a carta que recebera da rainha Isabel. - Sim, Senhora - prosseguiu o camareiro.
- Não podemos permitir que isto continue. É inaceitável que gente nobre sofra
privações e dificuldades e que viva em condições muito inferiores ao seu estatuto.
Não parece bem, Senhora. Devemos manter certos padrões. Está em jogo a nossa
honra. Peço-vos perdão pela minha ousadia, mas alguma coisa tem de ser feita e
sem mais tardar.
Ele tinha razão e Joana esperava que, na sua posição
de camareiro-mor, tivesse êxito junto de Filipe. Afinal, era aos camareiros que
cabia o tratamento das questões financeiras e não a ela; por outro lado, ele não
iria desfazer-se em lágrimas quando Filipe se zangasse por lhe pedirem de novo
a mesma coisa. - Tendes razão. Já, abordei essa questão muitas vezes com o meu senhor
e estou convicta de que Chimay não está a cumprir as instruções dele. - Seria aquilo convincente ou todos
saberiam que Filipe e a sua corte ignoravam flagrantemente os pedidos dela?
-É melhor que vós, como camareiro-mor, lembreis ao meu marido o acordo de
casamento e insistais em que a pensão seja depositada imediatamente no nosso
tesouro. Então, ficará tudo tratado e podemos prosseguir a nossa vida. Dom
Fradique não se mostrou nada confiante. - Espero que tenhais razão, mas tenho
muitas dúvidas. Pode ser que tudo o que é flamengo me levante suspeitas
imediatas, mas tenho a sensação de que, desde o início, nós, os espanhóis, não
fomos bem-vindos. Somos desdenhados e ouvem-se sussurros e risos abafados por detrás
das nossas costas. Portanto, o tio também notara. - Oh, tenho a certeza
de que vos enganais. Então, estamos a passar um tempo maravilhoso, em caçadas, festas
e bailes. Todos se divertem juntos. Apenas vejo rostos felizes e gargalhadas. -
Há, um assunto sério de que tenho de falar - O seu tom era duro. A
mudança de tema para os passatempos da corte aborrecera-o e ele queria que Joana
o percebesse. - Esperava não ter de vos falar disto. A minha esquadra devia ter
partido há muito e ter já chegado a Espanha. - Sim, eu sei que Margarida devia
ter partido há semanas, mas Filipe odeia ter de se separar dela e não a deixa
ir. Tenho é pena do meu pobre irmão, que tem de tolerar uma espera tão
prolongada, ansiando pela noiva. - Não posso incomodar-me com o que Filipe ou
João querem.
O melhor é falar claramente do que eu quero, respondeu, irado. - Tenho
de pedir a Filipe pela enésima vez que alimente os nossos soldados. Enquanto
vós dançais, cantais e jogais os vossos joguinhos imbecis, bons soldados
espanhóis têm vindo a morrer. Morrem de frio, de fome ou sabe-se lá de que
doenças! Há muito que as nossas provisões acabaram e o fundo que nos destinaram
se esgotou! - Dom Fradique, por favor acalmai-vos. - Joana sorriu para o consolar.
- Meu Deus, haveis ficado vermelho. Fico preocupada por vos ver tão zangado. É
claro que me entristece o facto de termos perdido alguns dos nossos homens, mas
sabeis tão bem como eu que a morte certa homens constantemente através da fome
e da doença; em todo o lado e não apenas aqui. Talvez estejais a envelhecer,
querido tio, e é por isso que essas mortes vos afectam tanto». In
Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença,
Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.
Cortesia de E. Presença/JDACT