domingo, 10 de agosto de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «… mercadores sertanejos, os ‘comboieiros’, designados em certas regiões por ‘funidores’, noutras por ‘tumberos’ ou, ainda, ‘pombeiros’ na região de Angola e ‘tango-maos’ e ‘lançados’ na Guiné»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«Vindos directamente dos portos coloniais americanos ou dos empórios comerciais europeus, os navios negreiros chegavam à costa africana alvoroçando a vida das populações locais. Chegavam carregados, até não poderem mais, de mercadorias de troca, sem falsas intenções, contando à partida com a adesão das sociedades africanas, onde a escravidão era uma instituição naturalmente aceite. Traziam consigo novidades, riquezas de outras terras, exotismos de outros lugares; produtos que o africano valorizou e a que se habituou, em alguns casos, até à dependência. Dos seus porões saíam objectos de ferro, contaria de variadas cores, barretes, manilhas, búzios e conchas ali aceites como moeda. Saíam armas e munições, mais eficazes que as dos naturais, cuja força era uma garantia de poder num mundo convulsionado por guerras contínuas. Saíam tecidos, rolos de tabaco, vinhos e aguardentes, nomeadamente a giribita brasileira, tão especiais neste trato. Saíam fardos de roupa usada, de onde sobressaíam os chapéus e os uniformes de vistosos galões, que exerciam tanta influência nos africanos de maior prestígio social, na medida em que lhes permitiam uma certa identificação com a grandeza e o heroísmo ditado pelo modelo europeu.
Tudo os negreiros se apressavam a expor em mercado assim que chegavam. Para o efeito, o próprio capitão do navio mandava construir, no descampado mais próximo do embarcadouro, um barracão de madeira, o quibanga, como lhe chamavam os congoleses, que depois também viria a servir para recolher os escravos. O toque do sino era o sinal de que tudo estava a postos para se iniciarem as transacções. Ali acorriam os povos das vizinhanças, os mercadores por conta própria, os que tinham casa de negócio para o efeito e, sobretudo, um grande número de intermediários. A estes últimos, com a expansão do tráfico para o interior, cabia a tarefa da concentração dos escravos nos portos marítimos de modo a permitir, tanto quanto possível, uma carga pronta a embarcar sem demoras nem prejuízos. Eram os mercadores sertanejos, os comboieiros, designados em certas regiões por funidores, noutras por tumberos ou, ainda, pombeiros na região de Angola e tango-maos e lançados na Guiné. Eram eles que viajavam pelos longínquos presídios e efectuavam a primeira compra dos escravos aí existentes.
Por norma, o europeu não se embrenhava no sertão com esse fim. Na generalidade, estes intermediários eram indivíduos negros ou mulatos livres, alguns treinados para exercerem essa função. Exceptuavam-se os lançados, expressão que no século XVI se reportava apenas aos brancos fugidos da metrópole ou fixados no ultramar sem autorização, que adoptavam os usos e costumes indígenas e monopolizavam a concentração e distribuição de mercadorias nos portos africanos; comercializavam-nas sobretudo com mercadores estrangeiros, o que levou a coroa a insurgir-se contra a sua actividade. Com o tempo, o termo passou a englobar também negros e mulatos que participavam nestas actividades comerciais.
À chegada dos navios negreiros, os intermediários afluíam à costa para se abastecerem das mercadorias secas e molhadas destinadas ao comércio e aprontarem os comboios de carregadores que as iriam transportar. Os carregadores, cerca de cem por cada comboio, eram requisitados ao capitão-mor que tinha por obrigação fornecê-los em benefício do comércio e que, por sua vez, os exigia aos próprios chefes indígenas, os sobas, que os seleccionavam de entre os naturais do país. Nem sempre era fácil aos sertanejos obter das autoridades estes homens, que eram vitais para a execução do que se propunham». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT