Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa
Americana
«Vindos directamente dos portos coloniais americanos ou dos empórios
comerciais europeus, os navios negreiros chegavam à costa africana alvoroçando
a vida das populações locais. Chegavam carregados, até não poderem mais, de
mercadorias de troca, sem falsas intenções, contando à partida com a adesão das
sociedades africanas, onde a escravidão era uma instituição naturalmente
aceite. Traziam consigo novidades, riquezas de outras terras, exotismos de
outros lugares; produtos que o africano valorizou e a que se habituou, em
alguns casos, até à dependência. Dos seus porões saíam objectos de ferro,
contaria de variadas cores, barretes, manilhas, búzios e conchas ali aceites
como moeda. Saíam armas e munições, mais eficazes que as dos naturais, cuja
força era uma garantia de poder num mundo convulsionado por guerras contínuas.
Saíam tecidos, rolos de tabaco, vinhos e aguardentes, nomeadamente a giribita
brasileira, tão especiais neste trato. Saíam fardos de roupa usada, de onde
sobressaíam os chapéus e os uniformes de vistosos galões, que exerciam tanta
influência nos africanos de maior prestígio social, na medida em que lhes
permitiam uma certa identificação com a grandeza e o heroísmo ditado pelo
modelo europeu.
Tudo os negreiros se apressavam a expor em mercado assim que chegavam.
Para o efeito, o próprio capitão do navio mandava construir, no descampado mais
próximo do embarcadouro, um barracão de madeira, o quibanga, como lhe chamavam os congoleses, que depois também viria
a servir para recolher os escravos. O toque do sino era o sinal de que tudo
estava a postos para se iniciarem as transacções. Ali acorriam os povos das
vizinhanças, os mercadores por conta própria, os que tinham casa de negócio para
o efeito e, sobretudo, um grande número de intermediários. A estes últimos, com
a expansão do tráfico para o interior, cabia a tarefa da concentração dos
escravos nos portos marítimos de modo a permitir, tanto quanto possível, uma
carga pronta a embarcar sem demoras nem prejuízos. Eram os mercadores
sertanejos, os comboieiros, designados
em certas regiões por funidores,
noutras por tumberos ou, ainda, pombeiros na região de Angola e tango-maos e lançados na Guiné. Eram eles que viajavam pelos longínquos
presídios e efectuavam a primeira compra dos escravos aí existentes.
Por norma, o europeu não se embrenhava no sertão com esse fim. Na
generalidade, estes intermediários eram indivíduos negros ou mulatos livres,
alguns treinados para exercerem essa função. Exceptuavam-se os lançados, expressão que no século XVI se
reportava apenas aos brancos fugidos da metrópole ou fixados no ultramar sem
autorização, que adoptavam os usos e costumes indígenas e monopolizavam a concentração
e distribuição de mercadorias nos portos africanos; comercializavam-nas
sobretudo com mercadores estrangeiros, o que levou a coroa a insurgir-se contra
a sua actividade. Com o tempo, o termo passou a englobar também negros e
mulatos que participavam nestas actividades comerciais.
À chegada dos navios negreiros, os intermediários afluíam à costa para
se abastecerem das mercadorias secas e molhadas destinadas ao comércio e
aprontarem os comboios de
carregadores que as iriam transportar. Os carregadores, cerca de cem por cada comboio, eram requisitados ao
capitão-mor que tinha por obrigação fornecê-los em benefício do comércio e que,
por sua vez, os exigia aos próprios chefes indígenas, os sobas, que os seleccionavam de entre os naturais do país. Nem sempre
era fácil aos sertanejos obter das autoridades estes homens, que eram vitais
para a execução do que se propunham». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de
Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN
978-972-772-957-9.
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