Cur
Non Utrumque
(…)
Nasci no Norte, na província agreste de Trás-os-Montes, na era de César de 1388. Foram meus companheiros de
infância minha irmã Maria e meus irmãos João Afonso e Gonçalo. Somos Teles
Meneses e descendemos de reis. Meu tio, o conde de Barcelos, João Afonso Telo,
criou-nos na sua casa. Já vos falei da morte precoce de meus pais, Martim Afonso
Telo e D. Aldonça Vasconcelos. A sua morte deu-se trágica e rápida, andava eu
pelos cinco, seis anos. O rei Pedro agraciou o meu tio com o título de conde e
vivi na sua casa até me casar. Minha mãe era muito bela, ruiva como eu,
delicada, jovem e jovem se foi, com os pulmões desfeitos como mais tarde meu
marido, o rei de Portugal. Frequentava a minha casa um tio de um apagado
fidalgo, filho de um Martim Lourenço Cunha, um tio simpático, que pretendia
fazer um bom casamento a esse João Lourenço, seu sobrinho. Meus tios viam com
bons olhos essa hipótese. Aceitaram. Que mais poderiam desejar para a sobrinha
que um fidalgo de bens seguros, morgado de Pombeiro, e senhor de suas rendas e do seu belo solar
beirão? Ninguém me perguntou se estava de acordo. Acedi, como todas as
jovens na minha situação e idade. Recordo-me de Lourenço, agora com desagrado, é
engraçado, não pelo que me fez após o meu divórcio para me casar com o rei,
mas antes. Nunca ninguém se debruça sobre a alma de uma jovem que teve sonhos e
ambições e que talvez tenha pretendido outro destino... Não vos posso, sequer,
afirmar se, nessa altura, o desejava. Na véspera de meu casamento rezei para
que minha mãe, já muito afastada na morte, me auxiliasse, intercedesse por mim,
me protegesse. De João Lourenço apenas recordo a estultícia, a cobardia, o seu
premente contacto e o desagrado que isso me provocava. Dei-lhe um filho que ele
abandonou logo que o deixei. Vós ouvistes já falar certamente. Um filho que ele
entregou a dois servos, para que cuidassem dele, como se se tratasse de um
simples animal. Mais tarde acusou-me, em Portugal e em Castela, de ter sido eu
a abandoná-lo. Quero-vos dizer que não senti essa perda como qualquer mãe sentiria.
Pode parecer-vos estranho mas foi um filho que nasceu de mim porque é natural
isso acontecer, mas, pobre cúança!, nada trouxe da minha alma. Nunca o amei.
Deus encarrega-se de castigar até aquilo de que nunca tivemos culpa. Esse filho
varão foi o que me faltou, esse ou outro qualquer, quando eu mais precisei
de um esteio forte e legítimo que me ligasse ao trono de Portugal. Meu amigo,
durante anos pensei que só pelo esforço da nossa vontade podemos controlar ou
modificar o nosso destino.
Enganei-me. Ele
encarrega-se de, no fim de tudo, reorientar o que julgáramos ter decidido e
levá-lo até onde determinara mesmo antes de termos nascido. Não me faleis em
esperança. Não é preciso. Não vale a pena e o resto só Deus sabe. O nosso
século tem sido mau. Recordo-me dos horrores da peste, em pequenina, e ela
nunca nos largou totalmente, os terramotos, os tornados... Meu tio contava
daquele terramoto tão forte, trinta anos antes de eu ter nascido, era vivo meu
avô que então se achava em Lisboa, que até caiu a capela-mor da Sé. Derruiu
parte da cidade. Ele guardava religiosamente uma taça de prata cinzelada que se
salvara e onde escondera, enrolado num pedaço de linho, uma esquírola do lenho
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Acreditava que a relíquia o salvara. Seguiram-se
as fomes, a falta de trigo, as filas de camponeses engrossando as bermas dos
caminhos, a esmolar, os trajes em farrapos. Depois de novo, em 1375, em Lisboa, a terra tremeu na
noite de Natal. Meu avô e meus tios, tal como meus pais, decidiram não voltar a
Lisboa nos anos próximos.
Os
malefícios do tempo anunciavam certamente a terrível guerra entre França e a
Inglaterra, que começou treze anos antes de eu ter nascido e ainda continua e
em que, sem querer, também participei, participámos todos em Portugal e em
Castela. Foi ela o pano de fundo, a tela pintada do teatro onde se cumpriu a
minha vida. Quando pelas festividades aqui vêm os actores representar os seus
autos e artes, descem o grande pano pintado que lhes serve de fundo e limita o
espaço entre os espectadores e as portas da igreja, eu não vejo nele os
demónios, os anjos, os seres fabulosos que percorriam as florestas nos tempos
de Artur, não. Vejo uma profunda planície limitada por árvores e nuvens,
grandes nuvens brancas, de onde brotam os rostos que conheci: Fernando, o Cambridge, João, Dinis, o Mestre de
Avis, João Fernandes, Nuno Álvares, o filho de Iria, Judas Navarro,
o meu genro enfermiço e vaidoso, o bom do Pessanha, eu sei mais quem! Dois anos
antes de eu nascer, no fim de um Verão quente e luminoso, como o são os da
minha terra, os da minha linda terra de luz e mar cujas sombras são azuis, o
que não acontece aqui em Castela, chegou a Portugal a Grande Peste. Foi
em 1386. Fixei a data porque o
martírio esperava-se. Ela já atingira a restante Europa, lembro-me de mestre
Judas dizer Europa com um ar
esfíngico, imperial, palavra que ninguém usa e que ele fora buscar aos velhos
alfarrábios de latim, onde estudava a história, as lendas, os velhos poetas e
filosofias». In Seomara
da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial
Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.
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Presença/JDACT