Uma
Constelação Única
«(…)
A situação política em Itália nos finais do século XV era propícia a uma abordagem
tão cínica. A península estava numa desordem, dominada pelas cidades-estados de
Milão, Veneza, Nápoles e Florença, assim como pela sempre oscilante influência
do papa em Roma. Cada um destes poderes procurava constantemente alargar o seu
território ou defender-se de vizinhos pérfidos, fosse por meio da intriga, de
alianças frágeis ou até da traição pura e simples.
Florença,
por exemplo, mantinha uma aliança pouco firme com Milão, receosa da sua antiga
aliada Veneza e desconfiada do papado em Roma. Entretanto, o papa Alexandre VI
alimentava planos para alargar o poder territorial de Roma através da
reconquista da Romagna, que antes pertencera aos domínios papais, gesto que
seria inevitavelmente encarado como uma ameaça clara por parte de Veneza e de
Florença, cujos territórios faziam fronteira com a Romagna.
Esta
fragmentação deixava a Itália no seu todo numa situação fraca e vulnerável. A
pouca distância, do outro lado dos Alpes, ficava a França, o país mais poderoso
da Europa. A Espanha, estimulada pelo fluxo de riquezas vindas do Novo Mundo,
em breve procuraria alargar a sua tradicional influência em Nápoles. Enquanto
isso, a leste, toda a cristandade estava sob ameaça do Império Otomano em
expansão, cujos exércitos levavam tudo à sua frente em direcção a norte,
através dos Balcãs, avançando pela costa leste do Adriático.
Tal
era o pano de fundo dos primeiros anos de Leonardo, Maquiavel e Bórgia. A
situação precária logo se desintegraria numa série de acontecimentos
desastrosos, que afectariam cada um destes três protagonistas de maneira
diferente. À medida que acompanhamos as suas vidas antes de eles se conhecerem,
vemos a mesma sucessão de acontecimentos encarados sob três perspectivas
diferentes, de cada uma das vezes permitindo-nos aprofundar as complexidades e
implicações deste período crucial da história de Itália. Seriam os
acontecimentos destes anos que acabariam por juntar Leonardo, Maquiavel e Bórgia
no seu fatídico encontro na Romagna.
O
que aconteceu precisamente durante esses meses pode ser deduzido a partir de
várias fontes em primeira mão. Sobretudo temos os despachos diplomáticos de Maquiavel,
com frequência diários, para os seus amos em Florença. Temos também várias
descrições e observações cifradas dos cadernos de apontamentos codificados de Leonardo.
A partir destas duas fontes, é possível montar um quadro vigoroso, ainda que
incompleto, da vida quotidiana dos seus autores. No entanto, são precisamente
estes hiatos que se tornam com frequência bastante reveladores. Tanto Leonardo
como Maquiavel
tinham boas razões para serem cautelosos com o que escreviam: uma proximidade
tão grande de Bórgia colocava-os na verdade em perigo de vida. As nossas
fontes para Bórgia durante aqueles breves meses são de modo semelhante
ambíguas. Podemos, na maior parte, deduzir o conteúdo dos seus despachos
secretos para Roma pelo efeito que estes tiveram no seu inconstante e expansivo
pai, Alexandre VI. As reacções do papa eram relatadas com pormenores vívidos
pelos vários confidentes que ele tinha entre os embaixadores na corte papal». In
Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e
Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT