terça-feira, 19 de agosto de 2014

A Paixão da Memória. O Canto da Salamandra. D. Leonor Teles. Seomara Ferreira. «Falta-me vos dizer o nome de outro romeiro que encheu a minha vida: "Fernando", o novo rei de Portugal, meu marido amado […] entrou nesta vida a 31 de Outubro de 1383. Nasceu em Coimbra no mesmo ano em que morria a mãe, a infeliz D. Constança, que repousa em Santarém»

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Cur Non Utrumque
(…) A peste frutificou e trouxe mais miséria, mais fome e horror. Grandes extensões devastadas, o abandono das herdades, dos campos, as cidades com muitos milhares de momos... Vós sabeis como tudo aconteceu. Na Inglaterra foi pior ainda. Cada barco que chegava, já com mortos, transportava o mal e a podridão que se expandia com uma rapidez assustadora. No fim os desgraçados duravam apenas dois dias. Acabavam à sede, à fome, queimados por dentro pela febre que lhes consumia o corpo como se o devorasse à dentada. Minha mãe não saiu da sua casa velha protegida pelas montanhas. A peste não a atingiu. Nasci no ano da morte do rei Afonso XI de Castela. O que aqui residiu no palácio deste convento, palácio que remodelou. Sucedeu-lhe seu filho legítimo, o único, Pedro, que foi logo contestado pelo irmão bastardo, Henrique de Transtamara, o filho de D. Leonor Gusmão. Henrique nascera em 1371. Pedro, o novo rei, nascera em Burgos, um ano antes. Quatro anos depois de Pedro de Castela, em 1378, nascia, John, quarto filho de Eduardo III de Inglaterra que casaria com a prima Branca, filha do duque de Lencastre. Digo-vos isto e, certamente, espantais-vos porque é tão acerada a minha memória, mas estes homens irão fazer parte, directa ou indirectamente, do meu destino, do de Portugal, do destino da minha geração como os que se seguiram.
Contava-me a ama, que me aleitou, que minha mãe era uma pessoa apagada, calma, muito sensível. Lia poesia e escutava-a com prazer. Havia a obra de um poeta simples, Berceo, que escreveu um poema de que dois ou três versos poderiam ser o eptitáfio dela e nosso: Nós os que vivemos e andamos ainda que possamos jazer no leito ou na prisão somos romeiros de caminho… Perdoai-me, porque traduzi, mas compreendestes o sentido: Todos cuantos vivimos que en piedes andamos... Frei Juan de Aranda, andei eu toda uma vida em lutas e sonhos para acabar por dar razão a um poeta! Na verdade, não somos mais que romeiros de caminho. Todos nós. Os poetas, os pobres, os ricos, os reis, as rainhas, todos. Falta-me vos dizer o nome de outro romeiro que encheu a minha vida: Fernando, o novo rei de Portugal, meu marido amado, mas me olheis assim, que vos contarei tudo, que entrou nesta vida a 31 de Outubro de 1383. Era mais velho cinco anos e nasceu em Coimbra no mesmo ano em que lhe morria a santa mãe, a infeliz D. Constança, cujo túmulo, como o do filho, repousa em Santarém. A sua romagem terminara aqui e penso que partiu feliz por se ter, enfim, libertado de tudo. Tenho dela a recordação através da memória dos que a amaram.
Viviam ainda o sogro, o fero Afonso IV, e o marido, o rei Pedro, meu sogro. Não podemos dizer que ambos tenham sido felizes. Afonso, ao morrer em 1391, deixava um trono seguro, passara por problemas com Castela e vira alguns dos fidalgos portugueses imiscuir-se nos problemas de Pedro I de Castela com a sua mulher e a amante por quem a trocara, a célebre Maria Padilla. Assistira impotente a tremores de terra e crises frumentárias, participara no assassinato político da amante do filho, D. Inês de Castro, que lhe deixava netos que se cruzarão com o meu destino também, conseguira debelar a guerra civil que o infante, perdido de raiva pela morte de Inês, levantara e que sucumbe nos acordos de Canaveses e, no ano seguinte, tivera notícias de que o príncipe Negro, Eduardo príncipe da Aquitânia, filho de Eduardo III, fora com o exército ter com o pai e, depois, de atravessar a Dordogne, devastara a Normandia... O pobre velho Afonso, o quarto do nome em Portugal, caminheiro de muitas lides e desgostos, finava-se dez meses depois, em Maio, pejado de remorsos e receando pelas contas que teria de prestar ao último juiz. Fora um ano terrível, o ano da morte de meu pai em Toro, como apoiante da rainha D. Maria de Castela, mesmo às portas da cidade. Pela França, príncipe Negro vencia em Poitiers o rei João II, o Bom, que sofreu 1000 baixas e 2000 prisioneiros, estando entre eles o próprio filho, Filipe». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT