quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A Estória Jogralesca de Afonso Henriques. António J. Saraiva. «… cavaleiresca e dela faz parte o famoso episódio do bispo negro, que Herculano romanceou nas Lendas e Narrativas. Em caso nenhum essa lenda, pela linguagem, pelos personagens, pelo enredo e pelo espírito poderia ser imaginada e escrita por clérigos»

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O que são a Terceira e Quarta Crónicas breves de Santa Cruz
«Entre as lendas relativas a Afonso Henriques podemos distinguir claramente duas séries. Uma é monástica. Afonso Henriques é o fundador de dois mosteiros que tiveram grande importância na primeira fase da monarquia, o de Santa Cruz e o de Alcobaça, e ambos contribuíram para conservar e engrandecer a sua memória. Em Santa Cruz se deve ter escrito um relato latino do século XII, no qual o próprio rei, falando na primeira pessoa, conta aos monges o assalto e conquista de Santarém. De Alcobaça saiu a invenção da fundação milagrosa do mosteiro, relacionada com a mesma conquista: Afonso Henriques teria feito o voto da sua fundação antes do combate, e São Bernardo, em França, teria tido a revelação dela e orado a favor da empresa. O escrito latino de Santa Cruz tem origem nos acontecimentos, embora seja obra de um eclesiástico, destinada a eclesiásticos; mas o milagre de Alcobaça é mera invenção dos monges, que mais tarde vem a ser integrada na Crónica Geral de Espanha de 1344, redigida em português. Tem o mesmo espírito que o episódio do milagre de Ourique, que aliás não se encontra nesta crónica e só aparece na de 1419. Tanto este como o da fundação milagrosa de Alcobaça são arabescos de escribas pios.
A outra série é, cavaleiresca e dela faz parte o famoso episódio do bispo negro, que Herculano romanceou nas Lendas e Narrativas. Em caso nenhum essa lenda, pela linguagem, pelos personagens, pelo enredo e pelo espírito poderia ser imaginada e escrita por clérigos. Herculano inspirou-se num códice proveniente de Santa Cruz, copiado em fins do século XV. Conservam-se dele duas crónicas breves, cuja parte principal é constituída por uma vida de Afonso Henriques, conhecidas pelo nome de Terceira e Quarta Crónicas Breves de Santa Cruz. São obras paralelas, aparentemente gémeas, pois contam aproximadamente a mesma tradição. Mas esse paralelismo é só de fachada, porque, analisando a linguagem e a forma literária, vê-se que a Quarta Crónica Breve é muito anterior à outra, de modo que a Terceira Crónica parece, à primeira vista, uma versão actualizada da sua suposta gémea. E, como quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto, o texto mais moderno introduz modificações e acrescenta um personagem, Egas Moniz, de que não fala a versão mais antiga.
Sabemos hoje que esta Terceira Crónica é, só um extracto da Crónica Geral de Espanha de 1344. Há outra versão coincidente com a Quarta Crónica: uma versão parcial (sem o episódio do bispo negro e sem o desastre de Badajoz) no Livro de Linhagens do conde D. Pedro e uma versão completa em castelhano antigo numa crónica castelhana XIV chamada de Vinte Reis, que serviu de fonte à crónica portuguesa de 1344. Graças a Diego Catalan, sabemos hoje que esta Quarta Crónica Breve é um fragmento de uma crónica galego-portuguesa citada pelo cronista Cristóvão Rodrigues Acenheiro na primeira metade do século XVI.
Baseados na Quarta Crónica Breve, na Crónica de Vinte Reis e no Livro de Linhagens do conde D. Pedro, vamos resumir a lenda que tem escandalizado desde o século XVI os historiadores do establishment, que a declaram inverosímil, inconveniente e até difamadora da memória do nosso primeiro rei, mas que impressionou vivamente a imaginação romântica de Herculano, sensível à poesia popular». In António José Saraiva, A Cultura de Portugal, Teoria e História, Gradiva, Lisboa, 1991, 2007, ISBN 978-972-662-190-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT